Reportagem: Paula Minozzo
Há décadas, uma história circula pelos corredores da tradicional Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. No primeiro dia de aula da faculdade de Direito, o reitor teria entrado na sala dos calouros e dito a todos eles: “Olhem para a direita. Agora, olhem para esquerda. Um de vocês não estará mais aqui no final do ano”.
Até hoje, é uma incógnita se a cena de fato ocorreu, mas o relato é passado de geração em geração para simbolizar a competitividade que domina o ambiente da elite acadêmica norte-americana.
Seja dentro das seculares universidades dos Estados Unidos, no mercado de trabalho ou até mesmo na glamourosa Hollywood existem pessoas que não precisam olhar para os lados para enxergar o futuro de fracasso. Elas ganham bolsas de estudos, são promovidas no trabalho, entram nas melhores universidades, terminam doutorados, mas, no final do dia, se autodenominam “fraudes”.
As pessoas que sofrem com a chamada síndrome do impostor acreditam que não merecem as próprias conquistas. O sucesso é atribuído a fatores externos como sorte, indicação, boa vontade dos outros, nunca ao próprio mérito. Elas convivem com o medo de serem “descobertas” por não serem tão habilidosas, competentes ou inteligentes como demonstram ser ou como a atividade que exercem exigiria.
As maneiras de lidar com esses sentimentos variam: alguns passam a buscar padrões inatingíveis de conhecimento e de performance, outros se escondem. Por trás desse sofrimento, pode estar uma tradição empresarial ou acadêmica altamente competitiva ou estereótipos socioculturais, como apontam especialistas.
A síndrome do impostor foi classificada como fenômeno psicológico há mais de 30 anos. Atrizes como Michelle Pfeiffer, Kate Winslet e Emma Watson já revelaram em entrevistas que se sentem desconfortáveis quando são reconhecidas por seus trabalhos como atrizes. E esse é um dos sinais: a insegurança sobre a própria capacidade não permite que os ganhos durante a carreira ou na vida sejam desfrutados.
O termo síndrome do impostor surgiu em 1978, quando pesquisadoras americanas publicaram um artigo científico sobre uma tendência comportamental que acreditavam ser, até então, quase exclusiva do sexo feminino. Pauline Rose Clance e Suzanne Imes, da Georgia State University, identificaram que mulheres bem-sucedidas nas suas áreas sentiam-se como “impostoras”.
A publicação foi a primeira a abordar a sensação que perturba a mente de quem acredita que alcançou o sucesso “enganando os outros”. No artigo, uma das 165 mulheres que participaram da pesquisa compartilhou seus pensamentos mais íntimos: ela acreditava que um erro no processo seletivo tinha contribuído para ela conseguir seu emprego. Outra revelou que acreditava que suas qualidades haviam sido “superestimadas” e, por isso, ela teria chegado onde estava.
O psicólogo especialista em terapia cognitivo-comportamental Fernando Elias José trabalha com candidatos que se preparam para provas de concursos e vestibulares. Ele revela que, para alguns, a ansiedade não cessa depois da aprovação. Ao atingir seus objetivos, quem sofre com a síndrome do impostor começa a se questionar como chegou até lá.
— Às vezes, a pessoa nem conhece o termo e menciona que se sente um impostor. Alguns dizem: “Vão descobrir que eu não sei nada”. E aquilo se torna uma situação real para a pessoa, mesmo que a realidade mostre o contrário. Eu pergunto: “Você conseguiu enganar em uma prova dissertativa?”— completa Elias José.
O especialista avalia que o termo síndrome do impostor, para denominar esses sentimentos contínuos e repetitivos, ainda é pouco usado por psicólogos no Brasil, embora seja mundialmente reconhecido e estudado. Por ser tratado como um fenômeno, e não um quadro clínico, a maior parte dos profissionais de saúde mental no país ainda o ignora.
— O indivíduo tem tudo para ficar bem com as suas conquistas mas, mesmo assim, não consegue ter paz. No Brasil, também há um elemento cultural, parece que é vergonhoso dizer que está se atingindo o sucesso. No Exterior, as conquistas pessoais são vistas de maneira mais positiva — opina o psicólogo.
- Criar desculpas para justificar suas conquistas ou o sucesso: “Ah, foi sorte”, ou “Eu estava no lugar certo na hora certa”.
- Acreditar que “se eu consigo fazer, qualquer um consegue”.
- Ficar demasiadamente abatido com críticas construtivas e acreditar que essas são evidências do seu fracasso.
- Sentir-se mais aliviado do que propriamente feliz quando consegue atingir seus objetivos.
- Preocupar-se que um dia será “descoberto” como uma fraude.
Valerie Young, autora do livro Os Pensamentos Secretos das Mulheres de Sucesso (Editora Saraiva), é uma das principais palestrantes sobre o tema no mundo. Logo nas primeiras páginas, ela esclarece: a obra não traz segredos sobre o sucesso, mas ajuda pessoas já bem-sucedidas a sentirem-se assim. Para ilustrar seus achados, ela traz relatos e histórias de engenheiras, CEOs, assistentes sociais, cientistas e enfermeiras.
A americana já palestrou nas principais universidades dos Estados Unidos sobre o tópico e revela que, em uma sala com centenas de alunos, quase todos levantam a mão quando perguntados se já se sentiram como impostores. O fenômeno, segundo a especialista, é comum entre profissionais e estudantes que convivem em ambientes competitivos, onde habilidades e conhecimento estão sempre colocados à prova, ou em profissões que trabalham com a criatividade. Os sentimentos também crescem quando essas pessoas são confrontadas com novos desafios ou uma tarefa na qual não detêm total domínio.
Além do medo de ser “descoberto”, a síndrome revela uma dificuldade maior para lidar com críticas, erros e uma temeridade em torno do fracasso. O comportamento é também associado ao perfeccionismo e a uma autoexigência em todas as situações. Se tudo não ocorre estritamente como o esperado, a sensação de incompetência, provavelmente, tomará conta.
— Se elas não sabem 150% sobre tudo, elas sentem vergonha. E saber tudo sempre é impossível em quase todas as áreas de atuação. Já conversei com estudantes que acreditam que deveriam entrar na universidade sabendo o que vieram aprender. Se temos expectativas altas, é claro que não vamos conseguir alcança-las e nos sentirmos como impostores — diz Valerie.
Há diversas hipóteses sobre o que leva pessoas diferentes, de áreas profissionais e realidades distintas a terem a mesma relação problemática com as próprias conquistas. Para Valerie, a cultura dentro de empresas e universidades deve ser revista para que os profissionais não sejam impactados com esses sentimentos.
— Organizações podem pensar em como ajudar as pessoas a encararem seus erros e suas falhas sem que se sintam fracassadas. A maior parte das universidades americanas está ciente desse problema. Todos perdem quando bons profissionais deixam de mostrar seu potencial por medo ou vergonha — completa.
Um dos sintomas clínicos relacionados à síndrome é a ansiedade. Algumas pessoas tornam-se workaholics para compensar as expectativas ou atribuem suas funções a outros colegas. Temendo o fracasso, a procrastinação também começa a fazer parte da rotina, como explica a psicóloga especialista em terapia cognitivo-comportamental Fabiane Kemmerer:
— A pessoa sabe que pode ir longe, mas não vai porque teme errar e falhar na frente dos outros. Deixar o trabalho para fazer no último momento, por exemplo, pode ser uma fuga daquela expectativa.
Quando encarado de maneira mais leve, o sentimento pode levar algumas pessoas a trabalharem e a se esforçarem mais, mas o medo de ser “descoberto” persiste. Em certos casos, profissionais deixam de dar suas opiniões em reuniões ou expressar seus posicionamentos com o temor de parecem incompetentes. Até mesmo possibilidades de promoções são ignoradas por acreditarem que não são capazes o suficiente para consegui-las.
— É importante que a pessoa combata isso para que tenha uma vida mais feliz, em paz, com a certeza de que pode usufruir das suas conquistas e dos seus ganhos — completa o psicólogo Fernando Elias José.
- Quando tiver dificuldade para reconhecer suas conquistas, faça anotações para relembrar que seus momentos de sucesso foram reais e frutos de méritos próprios. É muito fácil esquecê-los ao longo do tempo. Com anotações, você pode reler de tempos em tempos.
- Encare as tarefas e os desafios como chances para aprender coisas novas. Tenha como objetivo estar sempre se atualizando, e não parecer “inteligente” a qualquer custo.
- Lembre-se de que pensamentos geram sentimentos. Questione se o que você pensa é de fato um dado da realidade ou um pensamento “impostor”. Pensar “como uma fraude” gera ansiedade e pode atrapalhar em um momento decisivo, como na apresentação de um trabalho ou uma prova.
- Se você é estudante, lembre que no ambiente acadêmico, onde há muitos estudiosos, é fácil deixar que o pensamento impostor tome conta. Relembre que você está lá para aprender.
- Avalie quais momentos fazem você se sentir como impostor e questione se há expectativas de membros da família envolvidos.
Homens e mulheres em diferentes áreas e de diferentes idades sofrem com esses pensamentos, mas a síndrome pode ter um impacto maior em mulheres e em outros grupos socialmente oprimidos. A realidade sociocultural tem grande peso nessa equação. Durante os anos de pesquisa, Valerie constatou que as mulheres procuram ajuda em maior número e assumem a esmagadora autoria das publicações científicas sobre o tema — cerca de 90% das dissertações, por exemplo. Além disso, segundo a especialista, elas tendem a se culpabilizar pelas falhas e pelos fracassos de modo mais pessoal e intenso do que os homens.
— Devido ao padrão duplo como homens e mulheres são tratados na sociedade, elas se tornam mais suscetíveis a se sentirem assim. Portanto, são mais prejudicadas. Onde há estereótipos sobre as habilidades de qualquer indivíduo, baseado também em raça ou idade, há uma pressão maior. Em uma recente pesquisa com residentes de Medicina estrangeiros no Canadá, 85% obtiveram resultados altos nos testes que mostram indícios da síndrome do impostor. Isso pode ser porque, além de estarem em uma cultura diferente, precisavam se igualar aos nativos — exemplifica Valerie.
Não. A síndrome do impostor não tem relação com baixa autoestima, e sequer é um termo rebuscado para isso, de acordo com os especialistas. Os sinais da síndrome do impostor se tornam mais incômodas na execução de certas atividades em que há uma expectativa. A baixa autoestima está relacionada com a percepção da própria imagem em todas as situações.
— Você não se sente como um impostor quando passeia com o seu cachorro, por exemplo. Você se sente quando é contratado em um novo emprego ou precisa fazer uma apresentação — exemplifica Valerie.
No artigo das pesquisadoras americanas Clance e Imes, ainda nos anos 1970, elas traçaram uma relação entre a síndrome do impostor e a educação familiar. Entre as mulheres identificadas com o problema, algumas haviam sofrido durante a infância constantes comparações com outros familiares, que eram considerados os “inteligentes” da casa. Em outros casos, a criação foi marcada por um enaltecimento por parte de pais e familiares em qualquer situação. Assim, por serem sempre elogiadas, essas mulheres começaram a duvidar da própria capacidade quando confrontadas com atividades que dominavam.
— Essas duas situações geram uma demanda demasiada que podem levar à ansiedade e futuramente à síndrome do impostor. Quando os pais comparam muito seus filhos com outros modelos ou entre eles mesmos, demonstram uma dificuldade em enxergar as necessidades e habilidades genuínas da criança, propiciando a incorporação futura do sentimento de que nunca vai ser tão boa quanto a outra — completa Fabiane.
Foi durante uma conversa com amigas que Renata Swierginski, 37 anos, enxergou que a trajetória da sua vida foi marcada pela síndrome do impostor. No colégio, acreditava que era escolhida para ser líder da turma porque nenhum outro colega queria o posto. Na faculdade, assumiu outras posições de liderança estudantil, mas o sentimento persistia.
— Nunca achava que era por mérito. Acreditava que estava impondo aquilo aos meus colegas — comenta.
Depois de se formar no curso de Direito, Renata atribuía o sucesso do escritório de advocacia à sócia e raramente reconhecia suas qualidades e sua parcela de contribuição para as conquistas do negócio. Como advogada, sentia uma cobrança interna para vencer todos os casos.
— Quando perdia, era uma frustração grande. Acabei vivendo com esses sentimentos sem me dar conta, já que o dia a dia era tão corrido. Hoje, eu vejo que me acompanharam por muito tempo — reflete.
Atualmente, a gaúcha administra seu próprio negócio na área da estética. O apoio de um grupo de mulheres empreendedoras e a maturidade, como ela atribui, ajudaram a superar a sensação de que ela não era merecedora das coisas que havia conquistado.
— Estou numa fase muito bacana, consegui me tornar mais consciente da minha capacidade — conta.