ESPECIAL
Reportagem e edição digital: André Baibich | Imagens: Bruno Alencastro e Diego Vara | Edição de vídeo: Bárbara Müller
Daqui a pouco menos de um ano, ouviremos os clichês sobre os sacrifícios a que se submetem os atletas de ponta. Em meio à Olimpíada do Rio, falaremos sobre a superação de limites, as horas de treinamentos para sustentar o sonho do pódio. Mas e a luta de quem passou por tudo isso e, mesmo assim, não chegou até lá?
Durante um ano e meio, desde o fim de fevereiro do ano passado, ZH acompanhou a dura rotina de competições e treinamentos do nadador Samuel de Bona, do Grêmio Náutico União. O objetivo era mostrar sua trajetória até os capítulos finais no evento do Rio. Mas entre Samuel e os Jogos ficou a barreira do altíssimo nível de seus concorrentes a uma vaga, além da exaustão que ameaçou sua saúde.
Em um curto período, o atleta de 24 anos passou por um turbilhão emocional que influiu diretamente em seu desempenho. Depois de um 2013 brilhante, em que encerrou o circuito mundial na sexta colocação, veio a fadiga que o deixou com sintomas de depressão em um momento crucial da luta por vagas no fim do ano passado. Tudo em meio a oito horas diárias entre piscina e sala de musculação. Bem ou mal, alegre ou triste, não podia se dar ao luxo de parar.
Dedicação, estrutura, renúncia, talento e uma equipe multidisciplinar à disposição para lhe ajudar. Tudo jogava a favor, mas o sonho olímpico se esfarelou e foi adiado para 2020. Samuel é um exemplo vivo de como é estreito o funil que define as vagas.
A seguir, Zero Hora conta os altos e baixos, as euforias e decepções de uma caminhada que não chegou ao objetivo final, mas ao menos se encerra com a paixão do nadador pelo esporte renovada após um período de grave crise.
Samuel de Bona já sentia o nó na garganta e as lágrimas nos olhos. Estava cansado, faltavam cerca de 30 metros para o fim da prova e a quinta colocação acabava com o sonho olímpico. Precisava ficar entre os quatro primeiros na prova dos 10km da seletiva brasileira de maratonas aquáticas em São Bernardo do Campo, no final de 2014.
Era a primeira etapa da classificação olímpica e escolheria os quatro representantes do país na Copa do Mundo de Cancún, em maio de 2015. Das águas quentes do Caribe, os dois melhores brasileiros seguiriam ao Mundial – em que os 10 primeiros garantiriam vaga na Olimpíada. Os outros dois teriam de se contentar com a disputa dos Jogos Pan-Americanos de Toronto.
Samuel chegara a São Bernardo em meio a uma terrível crise. Meses antes da competição, alterações em seus exames de sangue indicavam sinais do chamado over-training (quando há reflexos na saúde pelo excesso de esforço) . O corpo do nadador alcançara seu limite, e já apareciam consequências físicas do excesso de esforço. Nenhuma era pior do que os sintomas de depressão. Após as intermináveis horas entre a piscina do Grêmio Náutico União e a sala de musculação, chorava em casa. Em um primeiro momento, tinha noites insones. Depois, só queria dormir.
– Não podia mais ver água na minha frente – disse meses depois, quando revelou à reportagem os detalhes do período sombrio.
Quando o despertador tocava para o treino da manhã, apelava para a função soneca, algo que nunca fizera. Passou a se atrasar para os treinamentos. A namorada Renata sentia que havia algo errado. Convidava para ir ao cinema, para jantar, mas ele preferia o conforto protetor da casa – e, principalmente, de seu travesseiro. Enclausurado, chegou a excluir seu perfil do Facebook em que costumava publicar atualizações sobre as competições.
É difícil precisar o momento em que tudo começou, mas o mau desempenho em uma prova na China, em que defendia o título conquistado na temporada anterior, foi determinante. Terminou em 10º, e Allan do Carmo, um de seus principais adversários ao lado de Diogo Villarinho, foi campeão. Voltou frustradíssimo.
A autocobrança por resultados agravou a situação. O 2014 era decepcionante após o brilho do ano anterior, em que ganhou etapas do circuito mundial e terminou em sexto do ranking. Quando nadava bem, faltava um detalhe no fim de prova para se destacar em meio ao pelotão que brigava pela liderança. Enquanto isso, Allan voava no caminho para se tornar o melhor do mundo no fim do ano.
A convivência com os rivais também aumentava o estresse. Além de concorrentes, eram colegas de equipe nas viagens. Muitas vezes, dividiam o quarto de hotel. Após uma competição, um deles deixou a medalha que conquistara à vista, na cômoda. Com seus botões, Samuel pensou que era ele quem teria de levar a mesma medalha para casa. A relação não era ruim, mas não chegava a ser próxima suficiente para serem amigos.
A tensão no ar dos quartos de hotel pelo mundo fez com que pedisse por apartamentos separados. Queria concentração total, mas a exaustão já não lhe permitia.
A 10 dias da prova no interior paulista, sofreu mais um baque. Depois de ver que a pressão sanguínea se alterava, consultou um cardiologista e, após alguns exames, o médico, com a presença dos pais e da namorada no consultório, soltou a bomba: “é possível que tu tenhas que parar de nadar”. Seu Leocir e dona Inês choraram, Renata também. Samuel retrucou:
– Posso colocar minha saúde em risco, mas não vou parar.
No mesmo dia, ao percebê-lo triste e desconcentrado no treino, o técnico Christiano Klaser, o “Kiko”, mentiu sobre os tempos que marcava. Não queria deixá-lo mais desanimado. A liberação médica para nadar em São Bernardo veio só quatro dias antes da competição, após mais uma bateria de testes.
O forte Samuel de 2013, que firmou-se como um dos melhores do mundo, talvez disputasse a ponta com Allan do Carmo e Diogo Villarinho no interior paulista. Mas não o Samuel deprimido e desiludido do fim de 2014, que via-se com a vaga ameaçada a poucos metros do fim da prova.
Não se sabe bem de onde tirou forças para uma arrancada final, que o fez ultrapassar dois adversários e fechar na terceira colocação. Nadou mal como se tornou regra naqueles meses, mas a cabeça, mesmo extasiada, o empurrou nos últimos metros. O primeiro obstáculo foi vencido, e vieram merecidas férias de 10 dias.
Quando falou a ZH sobre o sufoco que passou, Samuel já era outro. Cerca de um mês após o retorno das férias, no início de 2015, dizia ter recuperado o prazer de nadar. Estava animado para recomeçar.
Mas não foi apenas o período de descanso ao lado de Renata, nas praias do litoral gaúcho, que o recolocou no caminho. Um áspero desentendimento com Kiko foi essencial para a virada.
O treinador queria que viajasse para um período de treino de três semanas no Estado do Colorado, nos Estados Unidos, onde a equipe brasileira faria uma preparação na altitude. Ele negava. A discussão foi forte.
Horas depois, o nadador e o técnico se desculparam, e junto com um dirigente do União, definiram que a viagem sairia. Samuel reconhece que as três semanas no Colorado foram decisivas para que a cabeça voltasse ao lugar.
Havia, porém, muito terreno a recuperar. O quadro extremo de fadiga lhe tirou dos trilhos por algum tempo. Era preciso se superar para ser um dos dois melhores brasileiros na Copa do Mundo de Cancún, em maio, e garantir vaga no Mundial.
– Eu estava bem melhor de cabeça, mas sabia que não estava no nível de 2013 – admitiu.
A equipe brasileira chegou ao Caribe uma semana antes da competição. A ansiedade era visível no trio de maratonistas. Boa parte do sonho olímpico dependia daquela prova.
Samuel largou bem e manteve-se no pelotão de frente desde o início. Não queria “marcar” seus rivais, preferia fazer sua prova, o seu melhor. Em um dado momento, viu Allan e Diogo em meio a um pelotão que vinha atrás. Mais adiante, já no oitavo quilômetro, avistou-os de novo, mas dessa vez a sua frente. A desvantagem lhe deu um desânimo momentâneo, mas seguiu concentrado apenas em seu desempenho.
Nos últimos 30 metros, viu que quase alcançava Diogo Villarinho, mas a reação veio tarde demais. Terminou a prova em 22º lugar, a apenas quatro segundos de Diogo e de uma das vagas ao Mundial na prova dos 10km.
No hotel, decepcionado, passou a noite no quarto que dividiu com o dono da segunda vaga – Allan do Carmo foi o melhor brasileiro.
Restava apenas um fio de esperança – se Allan e Diogo não ficassem entre os 10 melhores no Mundial, haveria uma seletiva brasileira no fim do ano para definir quem representaria o Brasil nos Jogos. Era preciso manter o foco nos treinos em nome dessa possibilidade.
O desempenho insuficiente no México colocava mais um compromisso na agenda: os Jogos Pan-Americanos de Toronto.
Era um dos favoritos no Lago Ontario. Nadava na quarta colocação e travava uma disputa com o venezuelano Wilder Mendoza. Em meio à briga por espaço, Mendoza acertou uma potente cotovelada em seu nariz.
O golpe em cheio lhe fez perder terreno e o pelotão de frente ficou longe. Para piorar, foi advertido pelos juízes, que não puniram Mendoza pela confusão. Exausto e sem possibilidade de lutar por medalhas, abandonou a prova, algo raro em sua carreira. Com o nariz inchado pelo golpe, deixou a água e foi aplaudido pelo público que reconheceu uma injustiça na decisão dos juízes. Irritado com o que acabara de acontecer, só pensava: “por que estão me aplaudindo?”.
Não houve muito tempo para recuperação após a polêmica em águas canadenses. O calendário apertado reservava o Mundial em Kazan, na Rússia, logo em seguida. Nadaria a prova dos 5 km – que não faz parte do programa olímpico. Nos 10km, passaria pela estranha experiência de torcer para que os brasileiros não tivessem bom desempenho – era a única forma de seguir na briga por vagas para o Rio.
O 14º lugar nos 5km pouco importou. Todo o planejamento das últimas temporadas dependia do fracasso de Allan e Diogo. Por isso, quando Allan fechou a prova de distância olímpica na 9ª colocação e garantiu a vaga, seu mundo ruiu.
Logo após a prova, abraçou-se a Diogo, que por não ter ficado entre os 10 melhores também ficou de fora da Olimpíada.
– Eu sei o que tu estás sentindo – disse.
Dona Inês e Renata lhe mandavam mensagens do Brasil, queriam saber como estava. Tratou de tranquilizar a mãe e disse que reagiu bem à decepção. À namorada, confessou a tristeza. Já no hotel, diante das tentativas de Renata de lhe animar, preferiu dizer que já tinha se recuperado. Não queria preocupá-la.
Já sem o consolo à distância da amada, viveu o que classificou como uma das piores noites de sua vida. Não havia jeito de pregar o olho. Foi a primeira vez que teve de dormir sem o doce embalo do sonho olímpico a lhe ninar.
ZH encontrou Samuel pela última vez na tarde da última quarta-feira. Era difícil perceber que ali estava um atleta que viveu, há pouco menos de um mês, a maior decepção da carreira:
– Estou comendo o que eu quero, saindo, descansando. Vou ficar três semanas de férias. Nem acredito.
A tristeza pelo objetivo não cumprido ainda está presente, mas agora transformou-se em motivação para continuar. Já vê vantagem em não estar no Rio: terá um ano a mais do que seus concorrentes para se preparar com a cabeça totalmente voltada para 2020.
Hoje, aceita o que rotula como uma relação de amor e ódio com a natação. Após a exaustão, retomou a paixão pela vida de atleta – tanto que, na terça-feira passada, não resistiu e foi à piscina para um treino descompromissado.
O foco das próximas semanas, porém, será o curso de direito da Escola Superior do Ministério Público. As viagens e treinamentos lhe atrasaram os estudos. Nunca os abandonou, mas cursava poucas disciplinas. Agora, tem de terminar tudo em um ano.
Os livros podem dar boa segurança para tocar a vida depois das piscinas. Nos últimos oito meses, com a ajuda de patrocinadores, confederação, clube e governo federal, chegou a receber cerca de R$ 20 mil mensais. Mas sabe que, no esporte, essa condição confortável é temporária.
Antes dos bons resultados de 2013 ganhava cerca de R$ 3 mil, e sabe que pode voltar a esse patamar sem o status de atleta olímpico em ano de Jogos no Brasil.
Mesmo que tema um possível corte de recursos, garante que não vai desistir. Diz que seguirá pelo próximo ciclo, ainda que “no amor”, em uma prova de que deixou para trás o pior período. Quer estar plenamente satisfeito com sua trajetória antes de abandoná-la.
Não se importa com a possibilidade de passar pelos mesmos obstáculos, enfrentar dificuldades que colocaram sua saúde em risco. Questionado sobre a origem de tanta força, não sabe bem como responder. Pensativo, reconhece que pode vir da mesma fonte que o empurrou na virada improvável dos metros finais em São Bernardo – e que pode lhe catapultar para um final mais feliz daqui a quatro anos.