ESPECIAL
Textos: Jaqueline Sordi | Edição: Candida Hansen, Jaqueline Sordi e Maria Rita Horn | Arte e Design: Gonza Rodriguez e Leandro Maciel
Nem sempre é birra ou teimosia. As mudanças de comportamento de crianças e adolescentes podem ser os primeiros sinais de sérios transtornos psicológicos. Zero Hora conversou com pais e especialistas para conhecer um pouco sobre os distúrbios mais comuns e preocupantes nestas faixas etárias, suas manifestações e possíveis tratamentos.
Os pais de Daniel* não conseguem acompanhar o ritmo do filho. Em casa, o menino corre de um lado para o outro. Na escola, dificilmente termina uma tarefa. Antes considerado agitado, hoje, com 10 anos, ele tem o diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade. Já a mãe de Fernanda* sofre na hora de fazer as refeições com a filha. A menina de 16 anos, que tanto gostava de pizza, desde os 12 não come uma fatia. Nem uma colher de arroz, muito menos de feijão. Antes chamada de teimosa, hoje luta contra a anorexia. Enquanto isso, a mãe de Felipe*, 11 anos, é chamada frequentemente na escola pelos acessos de raiva do filho. E em casa, a preocupação não diminui. Ela nunca sabe o que esperar do menino de 11 anos, que ora está falante e agitado, ora se refugia no quarto para chorar. Felipe sofre de Transtorno Bipolar.
Histórias como as deles são mais comuns do que se imagina e retratam uma entre tantas angústias de pais de crianças e adolescentes com transtornos psicológicos. Muitas vezes, por esses problemas não serem corretamente diagnosticados, prejuízos físicos e emocionais podem ser levados para outras etapas da vida.
Nesse período, a linha que separa os diferentes distúrbios é mais tênue do que na idade adulta, levando os pais a terem dificuldade em perceber o problema que o filho enfrenta. Uma criança depressiva, por exemplo, pode, além de ficar triste e chorosa, ser extremamente irritada. Já aquelas que sofrem de transtornos alimentares podem, além de se recusar a comer, mudar constantemente de humor e ter surtos de agressividade.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a incidência mundial desses distúrbios na infância e na adolescência chega a 20%, podendo levar a quadros mais graves, como o suicídio. Muito mais do que teimosia ou rebeldia, essas atitudes são manifestações de labirintos na mente dessas crianças que, ao longo dos últimos anos, vêm sendo mapeados por cientistas na busca de diagnósticos mais precisos e tratamentos mais eficazes.
Ao longo desta série, por meio do depoimento de pais, você irá conhecer a história de jovens entre nove e 16 anos diagnosticados com diferentes transtornos e conhecer um pouco mais sobre estes distúrbios.
*A pedido das famílias,os nomes são fictícios.
** Os desenhos que ilustram esta reportagem foram feitos pelas crianças e adolescentes que têm suas histórias relatadas
Neste desenho, Felipe* mostra como se sente nos momentos de depressão
“Felipe* sempre foi um menino muito afetivo. Desde que ele nasceu, notei que era bem agitado. Às vezes, debatia-se na cama e falava durante a noite, mas era inteligente, rápido e esperto. Foi a partir dos cinco anos que comecei a notar alguns comportamentos estranhos. O Felipe passou a ficar muito agressivo, não aceitava um ‘não’, e atirava na gente tudo o que tinha na mão. Comecei a ser chamada na escola pelo comportamento dele, que estava prejudicando seu relacionamento com os colegas. Mas eram situações passageiras, que logo se normalizavam. Ele tinha amigos no colégio e conseguia acompanhar as aulas. Em algumas semanas, eu notava que ele ficava muito triste, sem querer sair do quarto. Em outras, se agitava, falava muito, queria sair para a rua, comprar coisas. Ficava mais irritado e impaciente. Durante anos, eu sentia que tinha algo de diferente com ele, mas não sabia o que era. Durante os últimos seis anos, levei-o a diferentes especialistas para identificar o que tinha. Uma das coisas que me chamam a atenção é a dificuldade dele em lidar com brigas entre adultos. Lembro de um episódio em que eu discutia com minha mãe, e o Felipe foi até a cozinha, pegou uma faca e ficou com ela apontada para nós. Ele parece
Ilustração que representa os momentos de euforia
que não sabe o que fazer com a raiva que tem dentro. Nem com a tristeza. Calmamente, peguei a faca de volta e guardei, sem que ele resistisse. Há dois anos, o Felipe foi diagnosticado com transtorno bipolar. Desde então, começou um tratamento específico e está melhorando, mas ainda apresenta algumas mudanças de humor bruscas e certas dificuldades na escola. No último relatório do colégio, professores indicaram que ele começou o ano tranquilo e participativo, mas, em alguns momentos, fica mais inquieto e irritado. Ele está com dificuldade para ler e fica triste por isso. Começa a chorar muito e diz que só quer ser um menino normal.”
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No desenho, Ronaldo* mostra um pouco da sua rotina na escola
“Desde muito cedo, Ronaldo* era considerado uma criança agitada.Com uns três anos, as instrutoras da creche já diziam que ele não parava quieto, mas pensávamos que não era nada fora do normal. Como é nosso segundo filho — o outro tem cinco anos a mais e também é agitado —, achamos que era apenas uma característica dele. Dizíamos que ele tinha ‘saúde em excesso’. Tínhamos o temor que ele se machucasse por não parar quieto, por estar sempre correndo. Com o passar dos anos, quando Ronaldo começou o primeiro ano do Ensino Fundamental, o comportamento passou a apresentar mais aspectos negativos, principalmente pelo desenvolvimento do aprendizado. Esse jeito dele começou a ficar muito latente, principalmente na escola, e estava fazendo com que ele não conseguisse terminar as tarefas pedidas pelas professoras. Ele não conseguia ficar sentado na sala de aula como os colegas. Levantava-se para ir ao banheiro, virava para trás para falar. Víamos que ele ficava angustiado por não conseguir terminar os trabalhos, e isso nos deixava angustiados também. A criança se sente mal, fica chateada, e os pais não sabem o que fazer. Nos demos conta, há alguns meses, quando ele estava com nove anos, que precisávamos chegar a alguma conclusão em relação ao Ronaldo. Nossa dúvida era: essa agitação é falta de limites ou será que ele tem algum transtorno? Para nós, pais, é muito difícil avaliar. Quando ficávamos mais rígidos com ele, notávamos alguma melhora, mas nada muito efetivo, muito menos duradouro. Foi quando decidimos levá-lo para ser avaliado por um especialista, que diagnosticou o Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH). Agora, em tratamento, notamos uma melhora significativa no rendimento escolar. Ele ainda fala bastante, mas está melhorando, vemos que ele tem mais discernimento, mais autocrítica.”
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Através do desenho, Fernanda* mostra como se sente quando se olha no espelho
“Quando era pequena, Fernanda* adorava comer carboidratos. Massas, pizzas e arroz estavam entre os alimentos preferidos dela. Eu, preocupada com a sua saúde, tentava introduzir também alguns vegetais, que não eram bem-vindos. Mas nada preocupante, já que a Fernanda era saudável. Quando me separei do meu marido, as coisas começaram a mudar. Ela tinha nove anos na época, e passou a ficar mais na companhia da avó. Doces, que ela até então não comia muito, começaram a fazer parte do cardápio. Às vezes, a Fernanda comia uma lata de leite condensado com chocolate durante a tarde e, nesse período, ela engordou um pouco. Quando tinha uns 12 ou 13 anos, levamos a Fernanda a um médico que disse que ela estava um pouco acima do peso. A partir daí, ela começou a mudar de comportamento sem que eu percebesse. Eu chegava em casa e a porta do quarto dela estava trancada porque ela ficava fazendo exercícios sem parar. Como eu não a acompanhava no almoço, porque eu estava trabalhando, não sabia o quanto ela comia, mas percebi que sobrava muita comida na geladeira. À noite, ela quase não se alimentava. E a perda de peso começou a aparecer. Neste verão, a Fernanda estava muito, mas muito magra. Era horrível ver ela de biquíni, só carne e osso. Uma cena que chegava a assustar. Ela não me contava, mas depois descobri que, nesse período, a Fernanda também começou a passar mal pela falta de comida. Ficava tonta cada vez que se levantava, não conseguia caminhar direito porque não tinha força. Medindo 1m57cm, ela chegou a pesar menos de 35kg. E, com a perda de peso, começou a ficar muito mal-humorada, irritada. Parou de se relacionar direito comigo e com a irmã dela, dizia que nos odiava. Cheguei a temer pelo pior em relação à saúde da minha filha. Fiquei realmente muito aflita, desesperada. Foi quando decidi procurar ajuda. Hoje, sei que o que levou a Fernanda a parar de comer foi um conjunto de fatores. Foi uma forma de ela manifestar as insatisfações com a separação dos pais, os problemas de relacionamento com os meninos, o fato de estar se achando gorda. Quando buscamos ajuda e a médica disse que ela estava com anorexia, eu não quis acreditar. A gente nunca acha que isso vai acontecer com nossa família. Chorei tanto, porque ela não queria se tratar. Mas, aos poucos, foi aceitando. Só que o tratamento não é fácil. Como o estômago dela já estava muito pequeno, ela passava mal quando comia. Tivemos, e ainda temos, de reintroduzir os alimentos bem lentamente. Há mais de um ano, ela está nesse tratamento, aumentando aos poucos o peso.”
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Na ilustração, Marcio* demonstra a preocupação dos pais com o seu transtorno
“O Marcio* sempre foi bastante ativo. Gostava de jogar futebol, ia bem na escola e tinha um desenvolvimento padrão. Ele nunca foi de ficar parado, pois, além das atividades escolares, tinha muitos amigos. Tudo mudou no final do ano passado, quando ele estava com nove anos. Depois que eu passei um mês no hospital por problemas de saúde, ele começou a apresentar algumas atitudes estranhas. A primeira coisa que notei foi que ele ficou mais abatido, sem querer sair para brincar. Lá por outubro de 2014, o Marcio começou a ficar muito ansioso. Ele também passou a reclamar de uma forte dor de cabeça e a chorar dia e noite por isso. Fiquei preocupada, levei-o ao hospital, mas parecia uma dor incurável. Fizeram todos os exames e não encontraram nada de errado. Ele começou a se fechar no quarto, ficar deitado, choroso. Passou a ter problemas para pegar no sono, isolou-se e, inclusive, parou de ir à escola. O Marcio dizia para os médicos que, além da dor, tinha muita preocupação comigo. Mas ele não conversava muito, não dizia o que sentia e, por isso, afastou-se muito dos amigos e da nossa família nesse período. Foram pelo menos três meses em que eu fiquei muito preocupada, angustiada, porque ele parecia não reagir a nada. Passamos por momentos muito tensos, com medo que ele fosse fazer alguma coisa. Até que o Marcio foi encaminhado a um psiquiatra e, a partir daí, teve o diagnóstico de depressão. Como eu já tive episódios de depressão também, acredito que ele tenha herdado essa tendência. Desde que se iniciou o tratamento com remédios, ele começou, aos poucos, a voltar às atividades normais, como sair para brincar, ir às aulas e se relacionar com os amigos. Foi um susto para mim. Um susto que ainda não passou, mas estamos conseguindo controlar a situação.”
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Julia* expressa como se sentia quando tinha crises de ansiedade
“Até os cinco anos, Julia* era uma criança super normal. Bem quietinha, comportada, acompanhava normalmente as aulas. Tinha amigos na escola, era muito carinhosa e amorosa com a gente. Só que, uns anos depois, as coisas começaram a mudar. De maio do ano passado para cá, mais ou menos, a Julia mudou completamente o comportamento. Ela passou a viver no mundo dela e a ficar mais agressiva. Se a gente perguntava algo, ela respondia em um tom de voz mais alto, algo que não fazia antes.
O mais estranho é que não teve nenhum motivo aparente para essas mudanças assim tão bruscas. Ela passou a tratar muito mal os irmãos mais velhos. Nós percebemos que ela ficou rebelde mesmo. Daí, começaram a acontecer alguns episódios estranhos. Um dia, quando estávamos em uma fila, ela ficou muito ansiosa e desmaiou, ali mesmo, sem motivo algum. E isso passou a se repetir. Ela não podia esperar em filas que desmaiava. Quando tinha uma prova na escola ou a apresentação de um trabalho, a professora me ligava para dizer que ela tinha apagado. Eu tinha de ir lá buscá-la. Muitas vezes, ela desmaiava de olhos abertos, ficava sem reagir. Tinha de ser tudo no horário certo, sem pressão, senão ela reagia dessa forma. No início de novembro do ano passado, o diretor da escola me chamou e disse que ela poderia já encerrar o ano letivo, pois estava ficando muito ruim para ela que os colegas assistissem aos constantes desmaios. A Julia chorava e dizia que não queria mais passar por isso. Ela deixou de ir na casa dos amigos, com medo de acontecer novamente. Eu fiquei desesperada, sem saber o que fazer. Foi uma fase muito ruim. Minha filha ficou em tratamento mais intensivo e, em março, voltou normalmente às aulas, já bem melhor.”
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