Por Cleuber Moraes Brito
Géologo, professor da Universidade Estadual de Londrina e consultor em Mineração e Meio Ambiente
Sucateados e sem infraestrutura, órgãos ambientais brasileiros não cumprem satisfatoriamente seu papel e são corresponsáveis por desastres como o de Mariana
A frase da música da Lama ao Caos, da banda Nação Zumbi, liderada por Chico Science em Recife, foi o manifesto de um movimento cultural (Manguebeat) que marcou a insatisfação do grupo com a situação precária de Recife na década de 1990. Na música Manguetown, da mesma banda, os versos traduzem esse desconforto: “Estou enfiado na lama, é um bairro sujo onde os urubus têm casas e eu não tenho asas, mas estou aqui em minha casa onde os urubus têm asas”. A lama aqui representa as mazelas de uma sociedade excludente, cujos maus odores e as condições ambientais fazem os seres humanos viverem em condições sub-humanas.
Acordamos nos últimos dias com uma lama que não sai dos nossos olhos e mentes, vinda de atividade minerária de ferro em Mariana (MG), que existe há muitas décadas e que é responsável por 80% da arrecadação do município e da geração de centenas de empregos, segundo o prefeito Duarte Júnior (PPS).
Para entender como tudo isto aconteceu, precisamos conhecer o universo do minério de ferro, sua extração e beneficiamento. O minério de ferro ocorre na forma de rochas onde se associam óxidos de ferro e outros minerais e elementos, principalmente a sílica. As operações de lavra ocorrem normalmente a céu aberto, em bancadas, através do desmonte com uso de explosivos e posterior transporte para o beneficiamento do minério. O beneficiamento ocorre por britagem, classificação granulométrica e concentração, onde se dá a separação do minério de valor econômico dos seus rejeitos. A técnica de flotação é a mais utilizada para concentração de ferro, mas utiliza grandes volumes de água. Os efluentes líquidos gerados no processo de beneficiamento são conduzidos para as barragens de rejeito. No caso de Mariana, estavam armazenados nas barragens de Germano e de Fundão, sendo estas as que se romperam.
No último ano, a empresa aumentou sua produção em mais de 15%, correspondentes a cerca de 25 milhões de toneladas, o que fez crescer também os volumes de rejeitos lançados nas barragens em aproximadamente 22 milhões de toneladas. Isto pode explicar as causas do rompimento, se não foram feitas as readequações equivalentes e necessárias nas barragens para este aumento da deposição dos rejeitos, mas ficam por enquanto no campo da especulação.
No acidente, foram lançados cerca de 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos na bacia hidrográfica local, acumulados ao longo dos anos de produção, que além das mortes confirmadas e os desaparecidos, apontam para um quadro desolador de impactos à flora, à fauna, à qualidade da água de abastecimento, além das repercussões socioambientais das comunidades que dependem das atividades locais. As causas do acidente ainda são desconhecidas, mas seus efeitos são facilmente reconhecidos e se estenderão por muitos anos.
Neste episódio, um outro aspecto deve ser destacado: o papel dos órgãos públicos responsáveis pelo licenciamento ambiental e pela fiscalização das atividades das mineradoras. Comuns a todos os Estados brasileiros, os órgãos ambientais estão falidos, sucateados em sua infraestrutura física e de recursos humanos. Padecem de falta de treinamento técnico, investimentos, não cumprem de maneira satisfatória seu papel institucional de gestor ambiental das atividades poluidoras e se qualificam como corresponsáveis por acidentes como este de Mariana. Da mesma forma, o DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral), autarquia federal responsável pela outorga de títulos minerários, que deveria fazer o papel de gestor e fiscalizador dos planos de lavra, agoniza na sua precariedade, aguardando o milagre de reforma do Código de Mineração, parado no Congresso Nacional, burocratizado, ineficiente e certamente também responsável por esta tragédia.
Por enquanto, a Samarco, responsável pelas operações de mineração, já recebeu cinco multas do Ibama, que somam R$ 250 milhões, e arcará com todos os custos indenizatórios individuais e coletivos e mais a recuperação ambiental da área impactada, de duração imprevisível, além do desgaste da imagem institucional, agora associada ao maior desastre ambiental do Estado de Minas Gerais.
Que este e outros acidentes semelhantes sirvam de alerta para as responsabilidades das atividades potencialmente poluidoras, intensificando os investimentos em técnicas e métodos que possam diminuir os riscos e mitigar seus impactos ambientais, e o Estado faça a sua parte de fiscalização.
A cabeça de burro e o futuro de Mariana
Pouca gente entende o que significa viver perto de uma mina de ferro, a céu aberto, de onde saem milhões de toneladas de minérios todos os anos
Por Ricardo Motta Pinto Coelho
Professor do Laboratório de Gestão Ambiental de Reservatórios (LGAR) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Por Rogério Fonseca
Doutorando da Pós-Graduação em Ecologia pela UFMG
O município de Mariana (1745) foi a primeira capital da então Província das Minas Gerais. Com o desenvolvimento da província, houve a necessidade da mudança da sede civil e religiosa da localidade de Mariana para a de Ouro Preto. Os locais ficaram revoltados.
Waldemar de Moura Santos a descreveu, em seu livro Lendas Marianenses (1967), da seguinte forma: “Nada mais aqui vingaria com êxito, porque uma Caveira de Burro, com maldição dos frades, estava enterrada em nosso solo, cujo local era mister descobrir, a fim de ser evitado o arrasamento da vila pela peste, fogo e guerra”. Seria um prenúncio do futuro daquela região? Bem, voltaremos a esse assunto depois... Voltaremos à essa maldição da “caveira de burro” feita pelos frades, um pouco mais adiante.
Mariana viveu, depois do ciclo do ouro no século 18, um novo ciclo econômico ainda mais pujante nos últimos 50 anos: o da mineração do ferro. Em seu território, alojam-se importantes empreendimentos desse que é o maior segmento da economia de Minas Gerais. As duas últimas décadas foram anos de muito progresso econômico e social para o município. O prefeito recebia polpudos recursos advindos dos royalties devidos à exploração de suas minas. Ruas foram asfaltadas, escolas foram construídas, monumentos e praças surgiram em toda parte.
A Samarco, junto com outras grandes empresas de mineração (como a Vale), possui um grande empreendimento no município de Mariana. Mais de 3 mil funcionários diretos trabalham na mina em Mariana. Outros tantos prestam serviços indiretos. De Mariana, parte um mineroduto, com centenas de quilômetros de extensão, que leva a polpa de minério concentrada, juntamente com muita água, para o porto de Ubu, no Espírito Santo. Essa localidade, de uma pacata cidade balneário, com lindas praias de areias brancas e mar calmo, onde eu (Ricardo P. Coelho) ia, junto com minha família, passar meus verões, tornou-se um importante porto, com usinas que transformam essa polpa (lama) de ferro em pellets que são exportados para a China, Europa, América e outras dezenas de países. Lá trabalham outros 3 mil funcionários com outro tanto similar de prestadores de serviços. Portanto, de 12 a 15 mil pessoas dependem da mina de Mariana da Samarco e do porto de Ubu, no Espírito Santo.
Pouca gente entende o que significa viver perto de uma grande mina de ferro, a céu aberto, de onde saem milhões de toneladas de minério todos os anos. Somente quem passou grande parte da vida, como eu, que nasci, cresci, casei e estou aqui escrevendo esse artigo na antevéspera dos meus 60 anos, sabe o que significa isso, o que é ter, sempre no seu horizonte, uma mina de ferro em plena operação. Passei meus primeiros anos de infância na rua Estevão Pinto, bairro da Serra, em Belo Horizonte. Minha mãe se preocupava com o intenso tráfego de caminhões de minério que desciam a ladeira, dia e noite, carregados de minério. A roupa não podia ficar muito no varal, porque encardia com aquele poeira vermelha. Com os anos, fomos vendo os rios ficarem cada vez mais vermelhos, o horizonte ondulado das serras em volta de Belo Horizonte, foi aplainado.
Muita coisa mudou dos longínquos anos 1960-1970, quando os generais de Brasília vinham a BH inaugurar uma nova mina de ferro que produzia centenas ou milhares de toneladas. Os empreendimentos daquela época eram minúsculos comparados ao de hoje. Hoje, esses empreendimentos são gigantescos, pois produzem dezenas de milhões de toneladas! O cenário impressiona: cavas com centenas de metros de profundidade, minerodutos e estradas de ferro de última geração (que nem os passageiros desse país têm direito pleno de usá-las), estradas vicinais por onde trafegam caminhões off road, com 5 metros de altura, grandes represas para contenção de rejeitos, dezenas de centros de pesquisa, milhares de profissionais especializados em dezenas de profissões as mais variadas. E não vamos esquecer dos prédios reluzentes para a diretoria, nos locais mais nobres de BH, Rio, São Paulo, Nova York ou Sidney.
E os prefeitos das pequenas cidades espalhadas por essas Minas Gerais estavam também muito felizes com os royalties da mineração. Entretanto, a convivência de seus eleitores com as minas nunca foi tranquila e pacífica. O rompimento das duas barragens de rejeito ocorrido agora em novembro em Mariana não é um fato isolado. Esse desastre completa (espero que não seja somado a outros, no futuro) uma lista de pelos menos cinco outros rompimentos de represas de rejeito, ocorridos ao longo nos últimos anos só em Minas Gerais. E os problemas não se restringem ao rompimento das barragens. A rotina operacional das minas implica em muita poeira, barulho, tráfego intenso de caminhões por toda parte, rachaduras e telhas quebradas nas casas do seu entorno, devido às explosões constantes, assoreamento persistente e contaminação com metais pesados em quase todos os rios do chamado quadrilátero ferrífero, um “quadrado” de 100 km x 100 km, localizado ao sul da cidade de Belo Horizonte, onde temos dezenas de empreendimentos iguais ou muito maiores do que o da Samarco em Mariana.
Bom, vamos voltar ao caso do trágico acidente em Mariana. Algumas perguntas são pertinentes:
- 1) Quais são as principais consequências de um evento como esse?
As consequências podem ser divididas em (a) impactos humanos (sociais e políticos); (b) impactos econômicos; (c) impactos ambientais e impactos envolvendo a interação entre todas essas dimensões. Em termos de impactos humanos, além da perda de vidas, de pessoas feridas ou relacionados ao traumas individuais e coletivos que certamente irão ocorrer, temos a necessidade de realocação/reconstrução não somente de provimento de moradias e de infraestrutura urbana, mas também a criação de novas alternativas de desenvolvimento econômico e social das pessoas diretamente e indiretamente envolvidas no desastre.
Os impactos econômicos são graves e variados. Eles vão muito além dos distritos de Bento Rodrigues e Paracatu. Atingem em cheio os municípios de Mariana, Ouro Preto e Ubu (ES), mas também vários outros da região do quadrilátero ferrífero de MG, inclusive a cidade de BH.
Acredito ser importante mencionar que esse desastre certamente trará importantes consequências no cenário político de MG e, principalmente, nas relações entre o Estado mineiro e seus políticos e as empresas de mineração e seus gestores.
- 2) E os impactos ambientais, especialmente, quanto ao que vai que vai ocorrer com o rio Doce daqui para frente?
Os impactos ambientais vão acontecer em todo o cenário atingido pela lama das represas que se romperam. Não há dúvida de que o rio Doce merece uma atenção especial. Podemos listar os principais impactos ambientais que estão ocorrendo/ irão ocorrer em função desse acidente: (a) interrupção temporária do abastecimento de água em função da má qualidade de água (exemplo: Governador Valadares); (b) assoreamento de trechos do rio e de alguns de seus tributários (acredito que seja um impacto irreversível); (c) Bioacumulação de metais e de outros poluentes advindos das barragens rompidas em peixes e outros componentes da biota aquática (reversível, a longo prazo, de três a cinco anos); (d) remoção e comprometimento de trechos significativos da vegetação ciliar (difícil de avaliar a gravidade, sem estudo preliminar); (e) mudanças na biologia das espécies, em decorrência do assoreamento, perda de volume e profundidade, com consequente aumento da temperatura média da água dos rios afetados; (f) alterações na paisagem tais como mudanças de cursos, aparecimento de alagados marginais; (g) problemas de aumento nas doenças de veiculação hídrica associado à perda temporária na qualidade dos serviços de saneamento, dentre outros impactos ambientais que possam vir ocorrer.
- 3) É exagero dizer que trata-se do pior desastre ambiental ocorrido em Minas Gerais?
Avaliamos esse como sendo o maior desastre ambiental de Minas Gerais, em toda a sua história. Desconhecemos outro tipo de acidente que tenha tido impactos ambientais tão amplos e variados e numa extensão comparável ao do presente caso.
- 4) As consequências dele também vão durar várias décadas?
O tempo de retorno às condições que prevaleciam antes do acidente será muito variável e tudo vai depender do tipo de impacto ambiental que estamos tratando:
(a) qualidade da água: terá um tempo de retorno pequeno (alguns dias a meses), dependendo da intensidade das chuvas, principalmente.
(b) contaminação da biota por metais e outros agentes tóxicos: vai demorar para aparecer (de alguns meses a um ano), mas esse tipo de impacto pode permanecer durante alguns anos em toda a calha do rio Doce, assim como estamos vendo na represa da Pampulha.
(c) assoreamento das calhas dos rios: irreversível em grande parte da área afetada, a não ser na região mais próxima das barragens rompidas que deverá ser totalmente dragada e recuperada, provavelmente. Mesmo nessa hipótese, a recuperação dessas áreas do entorno deverá levar de dois a cinco anos, no mínimo, dependendo dos resultados dos inquéritos, licitações, e cumprimento de várias exigências legais de toda ordem.
(d) vegetação ciliar (ripária): pode demorar décadas, para algumas espécies de crescimento mais lento.
(e) extinção de espécies endêmicas, típicas do rio Doce: caso seja constatada alguma extinção, trata-se de algo irreversível.
(f) doenças de veiculação hídrica: variável, dependendo da rapidez da reconstrução da infraestrutura de saneamento que foi destruída. Esse tópico deverá ser atacado prioritariamente e por isso, imagino que deverá ser de pouca duração no tempo (três meses a um ano).
(g) perda de biodiversidade: pode demorar de anos a décadas para ser restabelecida, dependendo dos programas de recomposição da biota que devem ser montados.
É triste a constatação de que todos os Estados da Federação possuem seus “atlas de desastres naturais” e nenhum, mas principalmente os Estados com intensa produção minerária ou hidroelétrica, reconhece barragens como uma estrutura edificada com possibilidade de romper. Foi assim no Piauí, com rompimento de uma hidroelétrica, e assim como em Minas Gerais, recentemente com uma barragem de rejeito de mineração.
Fica a pergunta:
- O que fazer?
Essa é a pergunta mais fácil de ser respondida sob o ponto de vista teórico, mas, ao mesmo tempo, é a mais difícil de ser executada sob o ponto de vista operacional. Em primeiro lugar, necessitamos de um processo na Justiça que corra de forma transparente, justa e que não seja contaminado por pressões políticas e econômicas. Em segundo lugar, é preciso mudar toda a estrutura de monitoramento e fiscalização do funcionamento das minas e outros empreendimentos congêneres, incluindo aí o setor petrolífero e o setor elétrico. Mais controle de segurança para barragens, usinas, plataformas off shore, portos, aeroportos e toda e qualquer outra grande estrutura feita pelo homem cujo colapso possa causar grandes danos em termos humanos, socioeconômicos e ambientais. Acreditamos ser importante melhorar as estratégias de planejamento estratégico e gestão das empresas desses setores, incluindo nesse planejamento a possibilidade real de colapso das obras mencionadas acima. É preciso melhorar – e muito – o monitoramento ambiental “sensu latu” que é feito no Brasil não somente com aperfeiçoamento e modernização, mas sobretudo dando mais possibilidade de auditar e controlar esse sistema. É preciso envolver as nossas universidades no processo de aumento de sustentabilidade da indústria nacional, através de mecanismos que induzam uma maior aproximação das universidades públicas com o setor privado. Em síntese, colocar mais inteligência, controle e transparência nesses setores importantes da economia e exigir deles mais sustentabilidade, o quanto antes.
Nunca saberemos se a “cabeça de burro” estava realmente enterrada em Mariana, mas com certeza a lama toda levou bem mais que isso rio abaixo.