ESPECIAL
Textos: Rodrigo Lopes e Rosane Tremea | Design: Leandro Maciel
Há 10 anos, o Katrina, um dos mais mortíferos furacões da história, afundou uma cidade e colocou de joelhos a maior potência militar do planeta. Abandonadas pelas autoridades, 1,8 mil pessoas morreram quando os diques que protegiam New Orleans se romperam sob ventos de mais de 300km/h. Em 2005, Rodrigo Lopes esteve na cidade que morria. Em 2015, Rosane Tremea visitou a cidade que reviveu.
Rodrigo (2005) - Arranha-céus brotam da água suja. Esta foi a primeira imagem que vi de New Orleans, quatro dias depois da passagem do furacão Katrina. O skyline envidraçado da metrópole engolida pela inundação desenhava-se pra mim ainda na Interstate 10, a rodovia que corta o sul dos Estados Unidos e atravessa a cidade. O visual era este. Já o cheiro era insuportável: os pântanos que rodeiam New Orleans vomitavam corpos, e, à medida que eu me aproximava da cidade, o calor e o cheiro de umidade misturado a cadáveres embrulhavam o estômago.
Inundada, saqueada e parcialmente destruída, New Orleans era símbolo da incompetência do governo George W. Bush, que abandonou sua população, composta em maioria por negros e pobres. Tratava-se de uma legião de refugiados que eu via passar em comboios formados por ônibus escolares amarelos à minha esquerda pela estrada praticamente vazia.
Todos queriam sair da cidade. Eu queria entrar.
Rosane (2015) - Dez anos depois é a minha oportunidade de visitar New Orleans pela primeira vez, como turista. Chego em um trem da Amtrak limpo e confortável que, pela região dos pântanos, circula em velocidade baixa paralelo à Interstate 10. À direita, a imagem do pântano e das árvores que brotam nele, com as raízes acima da água, impressiona. É um verde diferente.
De dentro do vagão climatizado, não dá para sentir o cheiro dessa floresta diferente, para dizer o mínimo. Também chama a atenção o tamanho do lago Pontchartrain à esquerda, e as palafitas que sustentam a rodovia. É muita água. À medida que nos aproximamos da área urbana, a velocidade diminui. Uma amiga que tinha estado ali em 2010, para registrar os cinco anos da tragédia do Katrina, chama atenção para o prédio gigante e reluzente à direita. É o Superdome, o estádio para onde foram levados milhares de desabrigados pelo furacão.
Rodrigo (2005) - New Orleans é como uma bacia. Abaixo do nível do mar, a cidade fica entre o Rio Mississippi e o Lago Pontchartrain. Quando o Katrina tocou a terra, rajadas de vento de até 280 km/h arrasaram os diques que protegiam a cidade. A bacia se encheu de água. A única porção de terra que não submergiu ficava próxima à margem do Mississippi. Por ali, cheguei ao centro de New Orleans, desviando de postes caídos nas ruas do arborizado bairro de Metaire, escoltado por batalhões de forças especiais – a cidade estava sendo saqueada. Ali encontrei pessoas como Marie Holzenthal, 74 anos. Ela e o marido eram os únicos moradores de um quarteirão inteiro de Jefferson Parish que decidiram ficar em casa. “Decidiram” não é o melhor verbo. Na verdade, o casal estava à espera dos netos, que prometeram retirá-los dali. Fazia cinco dias desde o telefonema. Os netos não tinham aparecido. Com um crucifixo nas mãos, sentada em uma cadeira de balanço na varanda da residência, ela me disse:
– É isso que nos mantém vivos.
Rosane (2015) - Há eventos que marcam uma cidade. Lisboa será sempre a do terremoto e dos incêndios de 1755. Nova York será sempre a do 11 de Setembro. Acho difícil New Orleans esquecer aquele agosto de 2005. Nem quem chega ali deixa de lembrar. A estação de trem é limpa e arejada, as bagagens despachadas entregues como num aeroporto, só que sem esteira, e a pequena fila para o táxi também não é diferente. Mas o abafamento do meio da tarde de primavera deste abril e as nuvens escuras no céu anunciam chuva e eu, pessoalmente, não gosto nada, nada disso. Em outro lugar, porque atrapalharia os passeios de quem só teria três dias e meio para desvendar uma cidade interessantíssima. Em New Orleans, as nuvens me dão medo. Não chega a ser pânico, mas o aviso que chega no meu celular acrescenta um ingrediente que me deixa assustada: o serviço de meteorologia alerta para uma tempestade. Aquelas poucas palavras que se acendem e apagam no telefone me deixam em sobressalto. Chegamos ao nosso hotel – longe do lago, longe do Rio Mississippi, longe dos pântanos, no Tremé, bairro onde a água do Katrina formou uma lâmina de 15cm em 2005 – a pé enxuto. Mas bastou entrarmos para desabar o temporal anunciado. O aviso também dizia que a chuva duraria até as 5:38 p.m. E, como por milagre (na verdade, ciência!), parou mesmo. Será aprendizado daquele duro episódio?
Rodrigo (2005) - Os ventos do Katrina não arrancaram as palmeiras da Canal Street, a avenida principal por onde outrora, imagino, deveria ser um pulsante local de turismo, com direito a passeio de trem de superfície. Das garagens dos hotéis Marriot e Sheraton emergiam carros de combate. As forças armadas e a Segurança Nacional tentavam recuperar o tempo perdido. Chegaram tarde. New Orleans contava 1,8 mil mortos. Para colocar ordem na casa, o governo decretou a cidade área militar – os 8 mil moradores que resistiam à saída, muitos por causa dos animais de estimação, tiveram de deixar suas casas à força. Com o decreto, todo cidadão encontrado nas ruas sem identificação seria detido. O trecho da Canal Street próximo ao Mississippi era um naco de terra seco. Dez passos à frente, já afundaria o pé na água. Aos lados, a mesma coisa. Era possível caminhar apenas até a esquina da Rampart Street. Dali, só de barco.
Rosane (2015) - Pela Canal Street, agora, circulam bondinhos simpáticos que ficam abarrotados de moradores e de muitos, muitíssimos, turistas. Numa das transversais, a Saint Charles, também. Caminhamos até o final da Royal Street, cruzamos a Canal, a quatro quadras da Rampart, e tomamos o streetcar St. Charles, linha que começou a circular em 1835, a mais antiga da cidade, uma das primeiras dos EUA. Ela ligava o centro de New Orleans – Nola, para os íntimos – a Carrollton, no subúrbio. Nosso objetivo é o elegante Garden District. Queremos ver os casarões de arquitetura típica e circular pela área com galerias de arte e lojas. Perguntamos se, por ali, as águas do Katrina fizeram algum estrago, e a resposta soa tão óbvia quanto a nossa pergunta: quem sofreu mais foram as zonas pobres. As áreas nobres, além de menos atingidas, foram as mais rapidamente reparadas.
Rodrigo (2005) - Cerca de 80% da cidade foi inundada. Nesses 20% consigo circular de carro, desde o primeiro dia transformado em hotel. Sem internet e com a telefonia prejudicada, New Orleans, uma das maiores metrópoles americanas, capital do jazz, é terra sem lei. Jazz, aliás, não escutei. Nem mesmo em um dos poucos lugares que resistia à tragédia: o bairro francês com suas casas e bares coloridos. No único bar de portas abertas durante a tragédia, o Johnny White Sports Bar, peço uma Coca-Cola. Para minha surpresa, o dono pega uma garrafa de 600ml aberta e serve o resto no meu copo.
– É a última.
Nas esquinas, militares armados davam a impressão de segurança com prazo de validade para acabar. O toque de recolher vigora das 18h às 6h.
– Pessoas andam pelas ruas roubando. Se tu tens uma bicicleta, te matam para ficar com ela. Há relatos de estupros. À noite, escutam-se muitos tiros – conta uma mulher.
Nas lojas, proprietários que saíram às pressas deixaram sofás abandonados em frente às portas, na tentativa de evitar saques. Em vão. Em uma rua inteira, a menos de uma quadra do cassino, TVs, cadeiras de escritórios, estantes e telas de computador se misturam com lixo e folhas secas. Perto dali, nos fundos da catedral de St. Louis, a estátua de Cristo de braços abertos permaneceu intacta. Três árvores ao redor não resistiram. Para muitos, o Cristo de pé foi um milagre.
Rosane (2015) - Nossa visita ocorreu quando faltava uma semana para um dos maiores eventos da cidade, o New Orleans Jazz & Heritage Festival, celebrado todos os anos no berço do jazz desde 1970, sempre em abril – a outra grande festa é o Carnaval da cidade, o Mardi Gras, em fevereiro/março. Ao contrário de 10 anos atrás, há muita gente e muita vida pela cidade.
As pessoas bebem e cantam na rua ou abarrotam perigosamente as varandas típicas ornadas de ferro, como se não houvesse amanhã. De repente irrompe a música e se veem, ao longe, lenços brancos sendo abanados por dezenas de braços, uma banda abrindo caminho. Logo atrás vem o casal de noivos. Há música por todo lado, gente entrando e saindo de bares, restaurantes, hotéis. Tudo muito divertido, muito alegre, muito agradável para quem faz turismo, a não ser pelos avisos em cartazes espalhados pelo French Quarter pelo Departamento de Polícia local: “Atenção, ande em grupo” – uma forma encontrada para proteger moradores e turistas em uma cidade ainda considerada das menos seguras nos Estados Unidos.
Rodrigo (2005) - A circulação limitada pelas águas obriga-me a serpentear por ruas e avenidas, dobrar à esquerda e à direita, retornar, encontrar uma árvore pelo chão, água ao final da rua, marcha a ré. Foi assim que, de repente, vi o Superdome a uns 500 metros de onde eu estava. Ali, um ginásio modernoso ao estilo das grandes arenas americanas, aconteceram algumas das piores atrocidades durante o Katrina. Sem auxílio das autoridades, os moradores foram aos poucos se empilhando nas arquibancadas. Até hoje, os relatos são controversos, mas fala-se de estupros e saques nos banheiros. Faltavam comida e remédios. O Superdome era uma ilha cercada de água por todos os lados. Ficar significava ter seus direitos violados. Sair significava morrer.
Há muitos lugares em New Orleans onde não pude ir por causa das águas. Não sei que visão teria do Lago Pontchartrain, aquele que engoliu a cidade. Como são suas margens? Há um calçadão? E como seria a famosa Lake Pontchartrain Causeway, uma espécie de Rio-Niterói com 38.422 quilômetros de extensão, a segunda mais extensa ponte do mundo? Isso tudo pra mim estava além da linha até onde eu podia ir de carro, limitado por água de todos os lados. Era perto dali que morava Benilda Caixeta, uma das vítimas brasileiras do Katrina. Vivendo em um apartamento no térreo, ela não foi resgatada a tempo. Informado de que uma brasileira estava desaparecida, tentei localizá-la. Mas nunca consegui chegar perto do lago, da ponte ou da casa de Benilda.
Rosane (2015) - Em frente à Jackson Square, a praça que é o coração do French Quarter, ao lado da Catedral, um dos prédios claros é o Presbitério, originalmente construído para abrigar o clero, mas nunca usado como tal. Iniciado no século 18, só concluído em meados do século 19 pelo governo americano, o local sediou os tribunais estaduais. No início do século 20, passou a integrar o Museu do Estado da Louisiana e hoje existe uma contradição. No segundo piso está o museu do Mardi Gras, o alegre e colorido Carnaval de New Orleans. No térreo, a exposição “Furacões: Katryna and Beyond”. Na nossa última manhã na cidade, uma chuva fraca lá fora, penetramos nesse pequeno mundo de corredores escuros, reprodução de sons de ventos de intensidades diferentes e imagens assustadoras de satélites, estandes construídos com madeira da destruição, vídeos com depoimentos de vítimas, heróis, personagens daquela tragédia, animações mostrando a rapidez com que a cidade seria engolida pelas águas, questionamentos sobre o sistema de diques e da claudicante ação das autoridades. Não é nada grandiosa a exposição. É simples. Uma de minhas amigas a compara a uma mostra montada em um pequeno hotel do interior do Rio Grande do Sul. Ainda assim, é contundente. É um sinal de que 10 anos depois, como agora, ou daqui a 50, 100 ou 200 anos, a cidade, por mais música, Carnaval e alegria que tenha, lembrará sempre aquele agosto de 2005 como o do furacão Katrina. Inesquecível. Tanto quanto New Orleans nessas nossas descrições paralelas.
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