Brasileiros de 15 a 24 anos são os que sofreram, entre 2009 e 2013, o maior aumento da taxa de detecção do vírus — o número de casos a cada 100 mil pessoas. No Dia Mundial de Luta Contra a Aids, Zero Hora discute motivos, prevenção e preconceito
Reportagem: Fernanda da Costa
Edição: Greyce Vargas e Ticiano Osório
Edição de vídeos: Bruna Ayres, Guilherme Brasil e Felipe Nogs
Imagens: Carlos Macedo e Diego Vara
— Viver com HIV não é só viver com HIV: é enfrentar desespero, preconceito e duros efeitos colaterais dos medicamentos — afirmou o jovem de olhos brilhantes, dos quais lágrimas pareciam se ensaiar a cada lembrança.
Mas nenhum pingo escorreu pelo rosto de Giovane Noal, que, apesar dos 23 anos, mostrou-se um veterano no assunto. É que ele descobriu o vírus há sete anos. Com força e coragem, reverteu o medo em ativismo. Hoje, é presidente da Associação de Transgêneros de Novo Hamburgo e coordenador estadual da Rede Nacional de Adolescentes e Jovens Vivendo com HIV/Aids, organizações engajadas nas ações do 1º de dezembro, Dia Mundial de Luta Contra a Aids.
A cada hora, cerca 10 pessoas são infectadas com HIV na América Latina. O Brasil é responsável por quase metade dos casos. E pelo menos um terço dessas novas infecções ocorrem em jovens entre 15 e 24 anos, segundo o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (Unaids). Conforme dados do último boletim do Ministério da Saúde, em cinco anos, de 2009 a 2013, as faixas etárias que mais tiveram aumento na taxa de detecção de HIV foram de 15 a 19 anos e 20 a 24 anos.
São jovens como Giovane, que encontraram o vírus logo nos primeiros relacionamentos. Aos 16 anos, ele acompanhava uma amiga em consulta à dermatologista quando viu estampado na parede do posto de saúde um cartaz com a frase: “faça o teste”.
— Vamos fazer? — perguntou ele à amiga.
Ela foi a primeira a levar uma picada no dedo, semelhante ao exame de glicose. Deu negativo. Giovane ofereceu a mão à enfermeira para o teste rápido. Cerca de 20 minutos depois, a profissional informou:
— Teu teste deu positivo, vou te encaminhar para um infectologista.
Ao ver aquele adolescente paralisado, sem condições de reagir à notícia, acrescentou:
— Pensei que a tua reação seria diferente.
— O que tu quer que eu faça? Me jogue aqui do nono andar? — retrucou Giovane, ainda digerindo a novidade.
Após contar sobre o HIV, jovem viu amigos se afastarem
Giovane tinha recentemente dado o primeiro beijo gay e tido o primeiro namorado. Por medo da reação do pai, demorou cinco anos para revelar a homossexualidade à família.
— No começo, ele não aceitou, mas depois pediu desculpas.
Dos relacionamentos amorosos que teve depois do diagnóstico, todos com pessoas sem HIV, Giovane conta que não sofreu preconceitos:
— Aceitaram numa boa. Se você gosta, vai gostar da pessoa do jeito que ela é, não por causa de um diagnóstico.
Por outro lado, o preconceito fez amigos se afastarem do jovem:
— Me abri com as pessoas erradas. Achei que eram amigos verdadeiros, mas sumiram depois que contei do vírus.
Diferença entre HIV e aids
- HIV é a sigla em inglês do vírus da imunodeficiência humana, que ataca o sistema imunológico, responsável por defender o organismo de doenças.
- Ter o HIV não é a mesma coisa que ter a aids.
- A aids é a doença causada pelo HIV. Há muitos soropositivos que vivem anos sem apresentar sintomas e sem desenvolver a doença.
Formas de transmissão do vírus
Como o HIV, vírus causador da aids, está presente no sangue, sêmen, secreção vaginal e leite materno, a doença pode ser transmitida de várias formas, como:
- sexo sem camisinha (vaginal, anal ou oral)
- de mãe para o filho durante a gestação, parto ou amamentação (transmissão vertical)
- uso da mesma seringa ou agulha contaminada por mais de uma pessoa
- transfusão de sangue contaminado
- uso de instrumentos que furam ou cortam não esterilizados
Fonte: Ministério da Saúde
O avanço dos medicamentos, a expansão do tratamento e a queda nos índices de mortalidade fizeram a aids perder o “status fúnebre” que mantinha no início da epidemia, nos anos 1980. Com isso, os jovens passaram a temer menos a doença e a subestimar os efeitos colaterais dos medicamentos, conforme o coordenador da Área Técnica de Doenças Sexualmente Transmissíveis/Aids e Hepatites Virais da Secretaria de Saúde de Porto Alegre, Gerson Winkler.
— É uma geração que não viu mais aquelas pessoas magras definhando em camas de hospitais. Agora, só se fala em aids uma vez por ano — afirma.
Nos projetos de prevenção ao HIV que realiza com os jovens, Giovane Noal conta que é comum ouvir frases como: “Vou transar sem camisinha, se eu pegar (HIV) tem tratamento, só tomar remédio”.
O problema é que esses jovens não têm conhecimento sobre os duros efeitos colaterais dos antirretrovirais, medicamentos destinados ao tratamento do vírus. A médica coordenadora do Serviço de Atenção e Terapêutica em HIV/Aids do Hospital Sanatório Partenon, Maria Letícia Ikeda, sustenta que eles têm de ser vistos como “última estratégia, quando falhou todo o resto”, e não como uma alternativa para quem não usou camisinha:
— Hoje é possível viver bem com HIV, mas não é fácil. Não é legal tomar medicamento todo o dia, implica em limitações de dietas e exercícios, além da lipodristrofia, que modifica a imagem corporal — explica Maria Letícia.
Associado aos antirretrovirais, a lipodristrofia é a alteração no tecido adiposo que provoca acúmulo de gordura no rosto e no corpo sem uniformidade, podendo necessitar de cirurgia para reparação.
Antes de tomar o chamado “3 em 1”, um comprimido que reúne a ação de três antirretrovirais, Giovane sofreu muito com a ação das drogas no corpo. Começou tomando seis cápsulas por dia e testou pelo menos dois tipos de medicação. O primeiro o fez ter diarreia por semanas, enquanto o segundo deixava seus olhos amarelados e provocava fortes dores de barriga.
— Era uma cápsula gelatinosa que caía no estômago tipo uma bomba atômica. Quando vomitava, tinha que tomar de novo, passar pela dor de novo — relata.
Especialistas afirmam que o aumento dos casos de HIV entre jovens também é consequência da comunicação inadequada dos serviços de saúde. A diretora do Unaids no Brasil, Georgiana Braga-Orillard, afirma que é preciso falar com os jovens com uma linguagem adaptada, mais compreensível:
— O jovem de hoje tem acesso à muita informação, mas não tem os instrumentos adequados para entender.
A diretora critica a retirada das questões de gênero dos planos de educação e acredita que o Brasil tem regredido nas discussões sobre sexualidade, sendo a epidemia de HIV uma consequência disso. O conselho da especialista é que os governos utilizem campanhas direcionadas para a aids nas comunidades, com linguagem local.
Em um país onde os jovens têm pouco acesso aos serviços de saúde, os governos também precisam se deslocar para onde eles estão, conforme o coordenador da Área Técnica de Doenças Sexualmente Transmissíveis/Aids e Hepatites Virais da Secretaria de Saúde de Porto Alegre, Gerson Winkler. Segundo dados do órgão, de todas as novas infecções na Capital em 2014, cerca de 30% foram em pessoas entre 13 e 29 anos, faixa etária cujas detecções vêm crescendo nos últimos cinco anos.
— Os jovens em geral só chegam ao posto de saúde quando estão muito doentes ou na hora de fazer o pré-natal, o que pode ser um diagnóstico tardio. Quanto mais cedo a pessoa souber seu estado sorológico, mais estaremos diminuindo as taxas de transmissão — afirma Winkler.
Neste ano, a prefeitura recebeu do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) um ônibus para realizar o teste rápido de HIV nas ruas. A ideia do projeto, chamado Fique Sabendo Jovem, é também falar sobre prevenção.
— É comum escutar que eles não gostam de usar camisinha porque que não é bom, não dá prazer. Mesmo depois de terem pego DST, meninas de 16 e 17 anos me disseram que não iriam usar. “Não como bala com papel”, me disse uma — conta o ativista Giovane Noal, um dos voluntários do projeto.
Para a médica coordenadora do Serviço de Atenção e Terapêutica em HIV/Aids do Hospital Sanatório Partenon, Maria Letícia Ikeda, essa é uma desculpa ultrapassada:
— É algo do senso comum que colocaram na cabeça deles. A gente tem trabalhos que mostram o contrário. Em oficinas, colocamos a camisinha na mão dos jovens com vários materiais e eles dizem se é quente, gelado, espeta... Dá para usar preservativo e ter muito prazer.
Há 17 anos atendendo pacientes com aids, a médica coordenadora do Serviço de Atenção e Terapêutica em HIV/Aids do Hospital Sanatório Partenon, Maria Letícia Ikeda, tem uma certeza: o preconceito mata mais do que a doença. No caso dos jovens, a discriminação é a maior causa do abandono dos medicamentos, conforme a médica.
A especialista já atendeu uma adolescente que deixou de tomar os remédios quando passou um período na casa de praia de uma amiga, por medo de que alguém visse a droga, que precisaria ficar na geladeira. Teve como consequência o aumento da circulação do vírus no organismo, o que baixa a imunidade, e acabou tendo de tomar um coquetel mais forte.
Os casos mais doloridos de preconceito nessa faixa etária, segundo a médica, estão ligados aos relacionamentos. Quando resolvem contar para seus parceiros que têm HIV, no momento em que já estão emocionalmente envolvidos, muitos soropositivos sofrem rejeição:
— “Tomei um pé, doutora”, dizem eles.
Os rompimentos acabam prejudicando tanto os jovens soropositivos, que, muitas vezes, eles relatam à médica não terem mais vontade de se envolver.
Não raro, o preconceito vem da própria família. Também ocorrem os casos em que os professores impedem soropositivos de praticar educação física, pois têm medo de que eles se cortem. Assim como em adolescentes sem HIV, a médica afirma que os curativos devem ser feitos com luva, o que não impede a prática esportiva.
Giovane Noal conta que é comum também as pessoas pensarem que o HIV passa pela saliva:
— “Precisam inventar uma camisinha pra língua” é uma das coisas escrotas que eu escuto — desabafa.
Discriminação não é com o vírus, mas com a forma de transmissão
Para Gerson Winkler, da Secretaria de Saúde de Porto Alegre, o preconceito não está direcionado ao HIV, mas às práticas que levaram à infecção, vistas como “feias e sujas”. Com isso, os soropositivos são enxergados como se fossem os culpados da situação. “O que tu fez para pegar HIV? Com quem tu andou?” são perguntas comuns, como se o vírus fosse “circunscrito a uma população marginal”, relata o coordenador.
— Isso atrapalha muito o serviço de saúde, cria um estigma que não permite essa pessoa de se movimentar. Ela se movimenta no escuro, às escondidas, para se proteger daquele olhar de julgamento e punição — completa.
A chave para quebrar o preconceito é a informação. Georgiana Braga-Orillard, diretora do Unaids, afirma que é preciso falar sempre das formas de transmissão e da carga viral indetectável, efeito do tratamento que reduz a praticamente zero as possibilidades de transmissão.
— Isso fará com que as pessoas tenham o hábito de se testar. A gente tem que banalizar o teste. Muitas vezes até os médicos têm receio de pedir o exame com medo da reação do paciente.
Ao passo em que a informação for vencendo o desconhecimento, as pessoas perderão o medo de falar que tem HIV e terão mais facilidade para aderir ao tratamento.
Aos 21 anos, Carla* descobriu a gravidez e o HIV juntos, em setembro. Estava desconfiada da gestação, pois os enjoos no trabalho passaram a ser recorrentes. A expectativa a deixou animadíssima, já que havia dois anos estava tentando engravidar, seu maior sonho.
Quando foi ao posto de saúde confirmar o diagnóstico, era só felicidade. Além da certeza da gravidez, foi informada de que já estava no terceiro mês da gestação e deveria fazer os exames para iniciar o pré-natal.
— Olha, tu tem que ser forte no que eu vou te dizer. Teu teste de HIV deu positivo — informou a enfermeira.
— Desabou o mundo pra mim, entrei num desespero. Pensei em tudo na hora, até me me matar, mas pensei mais no meu filho — conta Carla.
A jovem nunca havia cogitado a hipótese de ser soropositiva. Pensou no marido, que, chamado ao posto, descobriu que não tinha HIV. Seu pensamento voou rapidamente para a pior lembrança: em dezembro do ano passado, havia sido vítima de abuso sexual, caso registrado em ocorrência policial.
Quando o marido soube do vírus, chegou a se separar dela:
— Foi muito difícil, né. Eu aqui, sozinha, correndo para o médico e passando mal. Eu tive que me reerguer.
Carla procurou o marido duas semanas depois, e ele decidiu voltar para casa. Disse que não seria o HIV que o faria deixá-la.
— No começo ele ficou meio travado, não chegava perto de mim, não encostava em mim. Agora a gente tem uma vida normal.
Se sente incomodada com o preconceito da avó dele, que não deixa ela tomar chimarrão, separa a comida dela da dos outros e chegou a dizer que caso um mosquito a picasse, o inseto “iria morrer rápido que nem ela”. No trabalho atual, como operadora de caixa em um supermercado, contou do vírus apenas para os chefes. Pediu que eles mantivessem a sorologia em segredo, mas a notícia se espalhou entre os colegas, que passaram a rir dela e a tratar como “a aidética”.
Afastada do local e tomando medicamentos para depressão, ela agora pensa só no filho. Mesmo sabendo que com o tratamento a chance do bebê ser infectado é quase zero, ela desabafa:
— Tenho medo de passar para o meu filho. Não quero que ele passe pelo que estou vivendo.
*Nome trocado para preservar a jovem, que preferiu não ser identificada
Semanas de febre alta e diarreia levaram a transexual Natália*, 27 anos, a peregrinar por três postos de saúde para conseguir fazer um teste de HIV no ano passado. No primeiro, ouviu que deveria fazer o exame no local mais próximo de sua casa. No outro, que tinha de agendar o atendimento. No terceiro, resolveu ligar para secretaria de saúde:
— Sei dos meus direitos e fui atrás. Botei no viva-voz e disse “estou aqui no posto e estão dificultando que eu faça o teste”. Responderam que eles deveriam fazer o teste em mim na hora.
Barrar o teste, para ela, é contribuir para que as pessoas desistam de saber sua sorologia e descubram apenas quando estiverem muito debilitadas. Também aumenta a chance delas transmitirem o vírus para outras pessoas.
— Eu insisti em fazer, mas e as outras pessoas? Desistiram e infectaram os outros?
Outro problema é a forma desumana com que ela e outros soropositivos receberam o diagnóstico.
— Ó, o HIV deu positivo, hepatite negativo e sífilis negativo. Agora vou preencher aqui os papéis contigo — relatou a enfermeira.
— Eu nem tava mais escutando o que ela tava falando. Tava desorientada, desesperada, pensando que ia morrer. Não teve ninguém pra me dizer que tinha tratamento, que minha carga viral poderia ser indetectável — reclama Natália.
Quando chegou em casa, foi correndo para a internet pesquisar. Entrou em contato com uma soropositiva ativista e ingressou em grupos de pessoas com HIV nas redes sociais.
— No começo, eu chorava muito. Fiquei tão neurótica que eu não chegava perto de quem espirrava. A informação e o acolhimento dessas pessoas mudaram tudo.
A jovem conta que costuma falar sobre o vírus nos relacionamentos e nunca enfrentou preconceitos. À mãe, no entanto, ela prefere manter segredo no momento.
— Quero contar um pouco mais para frente. Tenho medo que ela fique nervosa.
*Nome trocado para preservar a jovem, que preferiu não ser identificada