ESPECIAL
Texto: Vanessa Kannenberg | Edição: Rafael Balsemão | Foto de Capa: Carlos Macedo
Como faz todos os dias, na manhã de 5 de agosto, o programa Gaúcha Atualidade, da Rádio Gaúcha, provocou os ouvintes a enviar por WhatsApp histórias sobre um tema que os apresentadores tratariam. Naquele dia, a pauta era o mau desempenho das escolas gaúchas no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Entre as centenas de mensagens, um assunto se sobressaiu: a violência. ZH conferiu esse acervo de relatos e conta em detalhes dois deles. Com outras duas histórias - o jovem esfaqueado ao sair da escola e o professor agredido por familiares de um aluno -, formam um mosaico da insegurança que ronda as instituições de ensino.
O professor de Geografia Carlos Geovani Ramos Machado havia planejado, para aquele dia, uma atividade no cinema. A ideia era mostrar outra realidade para os alunos do 7º ano da Escola Municipal Presidente Vargas, em Porto Alegre. Na telona, o filme brasileiro Colegas, sobre sonhos vividos por garotos com síndrome de Down.
Um contratempo após a atividade fez com que aquele passeio tivesse um desfecho trágico. Depois de discutir com um aluno que teria participado do furto do lanche de colegas menores e de levar uma joelhada do estudante, o professor Geovani foi recebido pelos familiares do menino na escola, que o acusavam de ter batido no adolescente. Acabou espancado e humilhado pelos parentes do garoto. Os dentes ficaram quebrados.
- Achei que tudo estava resolvido. Eles me encheram de desaforo, tentei argumentar. Enquanto explicava, veio um tio do aluno e me deu um soco com um tijolo no rosto. Eu caí, sem reação alguma - conta Machado.
Antes de entrar na ambulância, o professor lembra ter acordado e ouvido alunos e pais gritando:
- Tem que bater, linchar.
Aquelas palavras doeram mais que as agressões físicas. Ao recordá-las, não segura as lágrimas.
- Foi muito chocante. É como se a violência não fosse suficiente.
O episódio completou um ano na última quarta-feira. Ainda hoje, o professor tem dentes provisórios, um deles apenas “colado”, visivelmente à frente dos demais.
VÍDEO: vítimas falam sobre traumas e agressões sofridas nas escolas
Geovani não tem dinheiro para corrigi-lo - custaria mais R$ 7 mil. Foram seis dentes danificados. A Secretaria Municipal de Educação (Smed) informa que aprovou o orçamento de R$ 31 mil para a reconstrução da arcada dentária, já que o caso se enquadra em acidente de trabalho. A liberação depende da procuradoria-geral do município, sem previsão.
O atendimento psicológico também teve de ser interrompido. Mesmo após ter trocado de escola e voltado a lecionar depois de seis meses, as crises de depressão são frequentes. Geovani conta que perdeu o poder de mediar problemas em sala de aula.
- Se alguém começa uma briga, paro tudo e chamo a direção. Simplesmente, não tenho reação - desabafa o professor, que, dividido entre o amor à profissão e o trauma, estuda para concurso.
Só no último ano, a Smed contabiliza cinco casos considerados graves de violência envolvendo professores. Em todos eles, os agressores não eram alunos, mas familiares ou amigos.
A sensação de insegurança não é apenas dos professores. O sentimento é compartilhado pelos alunos. E o desamparo está dentro e fora dos muros da escola. A 600 metros do Palácio da Polícia, na Avenida Ipiranga, um crime chocou Porto Alegre no mês passado e deixou marcas em Dener Schavinski Stefanello, 18 anos. Ele foi esfaqueado em 8 de julho, a uma quadra do Colégio Protásio Alves.
Dener não quer mais falar sobre o caso. Recuperado do golpe próximo ao coração e de uma hemorragia, voltou à sala de aula só nesta semana. A mãe demorou a encontrar uma escola para a qual ele quisesse voltar. O rapaz se recusava a retornar ao Protásio Alves.
- Todas as opções que apareciam, ele reclamava que são perigosas, que têm violência - conta a mãe do rapaz, Lisiane Schavinski.
O suspeito do crime permanece preso, segundo o delegado Cesar Carrion - outras vítimas também o reconheceram. Um deles é um estudante de Direito, que também foi golpeado com uma faca, mas cuja perfuração parou na jaqueta.
- São casos difíceis de resolver, porque há poucos registros policiais. E quando resolvemos, os criminosos não ficam presos - critica o delegado.
A diretora do Protásio Alves, Ana Maria de Souza, diz que seus alunos, na maioria das vezes, vão até a polícia. Segundo a escola, cerca de 50 estudantes teriam sido atacados no último ano na região. Mobilizados pelo ataque, organizaram protestos. Um policial passou a ficar fixo na escola. Mas assaltos seguem frequentes.
- Um PM plantado aqui não resolve, é o reforço de efetivo, a inteligência, a ronda que podem fazer a diferença - afirma a diretora.
Em outras escolas, o quadro não é diferente. Na Alcebíades Azeredo dos Santos, com quatro hectares em Viamão, quase no limite com a Capital, não é diferente.
- Não tem um dia em que não entre um aluno e diga: “fui roubado” - diz a diretora da escola, Naira Allem da Veiga.
Com 36 anos de docência pública, na falta de policiamento, ela faz às vezes de policial. Já separou brigas, tirou droga da mão de aluno e expulsou invasor. Os banheiros passaram a ser trancados, e para usá-los é preciso pegar a chave na direção. O videomonitoramento serve para verificar suspeitas e também intimidar.
Mesmo assim, Naira se vê impotente. Baleado em um assalto no qual era um dos autores, um aluno, hoje com 15 anos, ficou tetraplégico. Voltou à Alcebíades neste ano para reencontrar a diretora.
- Ele só queria um abraço - recorda a educadora.
Na Lomba do Pinheiro, a Escola Estadual Rafaela Remião mantém os portões fechados - estratégia diferente da adotada pela Alcebíades Azeredo dos Santos, em Viamão, que fica aberta para o acesso de pais e alunos. Até a pracinha, com quatro balanços e um escorregador, e a quadra de esportes ficam cerradas. Tudo para proteger o patrimônio que, mesmo assim, não fica a salvo.
Vítima de assaltos frequentes, principalmente aos finais de semana, quando alguns moradores pulam o portão para jogar bola, a escola sofreu um golpe mais duro no feriadão de Tiradentes, em abril deste ano. Cerca de R$ 10 mil em produtos recém adquiridos para o refeitório, como batedeira industrial e alimentos, foram furtados. Segundo a polícia, alunos da própria escola estavam entre os suspeitos.
- Acreditamos que tenham participado de outros ataques, mas, só dessa vez, conseguimos ter certeza, com a ajuda de imagens das câmeras de segurança - conta a diretora Maria Garcia dos Santos.
Como resposta, a direção investiu em reforço no controle dos acessos, mas diz que não pode fazer nada com relação aos infratores. Diante do quadro de insegurança, dois pais de estudantes se ofereceram para fazer rondas no entorno do colégio. De posse das chaves, verificam se há movimentação estranha e avisam a Brigada Militar em caso de desconfiança. Mais uma estratégia para preencher o vazio do policiamento.
Mãe de dois dos 1,5 mil estudantes da instituição, uma doméstica preocupa-se com a segurança dos filhos, dentro e fora da sala de aula. O mais velho, de 10 anos, é colega de alguns dos suspeitos do furto à escola. Ela se diz “horrorizada” com a situação.
- Converso com meus filhos, explico o que é certo e errado. E quem não tem família? E os pais que não têm tempo e confiam no papel da escola? Quem abraça essas crianças acaba sendo a rua, o tráfico - diz a doméstica.
Professor de Filosofia na Escola Estadual Alcebíades Azeredo dos Santos, Diego Carlos Bregolin sintetiza um sentimento que parece ser comum a todos - alunos, pais e professores:
- A escola é pública, fica em um prédio público, mas que não tem segurança pública. Ela vai se cercando, colocando cadeados e se aproximando cada vez mais de uma prisão. A escola não deveria fazer papel de polícia, de assistente social, de psicólogo e ainda de educadora. É a qualidade do ensino que perde com isso.
As escolas estaduais frequentemente aparecem como cenário de ocorrências policiais, mas não há números que possam servir de comparação com outros períodos. A Secretaria Estadual de Educação (SEC) diz que não contabiliza os dados de violência nas escolas porque as notificações nem sempre chegam ao seu conhecimento. De acordo com o secretário da pasta, Vieira da Cunha, a aposta é na prevenção:
- A gente faz o que pode quando tomamos conhecimento, mas nossa intenção é evitar que esses fatos ocorram.
Até o final do atual governo, em 2018, a secretaria promete que cada uma das 2.558 escolas estaduais terá uma Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e Violência Escolar (Cipave), articulação voltada a discutir os problemas individuais, identificar locais de risco e violência, planejar medidas de prevenção e acompanhar execuções. Atualmente, existem 957 Cipaves - abrangendo pouco mais de um terço do total de escolas. Além disso, educadores estão sendo capacitados em comunicação não violenta para lidar com conflitos.
A Secretaria de Segurança Pública (SSP), responsável por reunir todas as ocorrências policiais no Estado, não tem o recorte da situação da criminalidade dentro e no entorno de escolas. Justifica que utiliza uma metodologia oficial do governo federal, que delimita apenas cidade e tipo de crime. Sem dados organizados, a Brigada Militar (BM) foca sua atuação nas áreas próximas a colégios, por meio das patrulhas escolares. Segundo a assessoria de imprensa da SSP, o policiamento ostensivo realiza rondas mais intensas nos horários considerados de maior fluxo de pessoas em torno das escolas, de acordo com a disponibilidade de efetivo e viaturas.
Outro paliativo é o programa PM Residente, que fixa um policial militar na escola, mediante requisição da Secretaria da Educação - mais uma vez, não há registros sobre quantas e quais escolas são contempladas com o projeto. A SEC diz que o registro cabe à BM, que informa que o cadastro está a cargo da Educação. Para que cada uma das 2.558 escolas estaduais tenha um PM fixo, 14,2% dos cerca de 18 mil soldados que trabalham no policiamento ostensivo teriam que ser usados nos colégios.
Nas instituições de ensino municipais, o policiamento é responsabilidade da Guarda Municipal. De acordo com a Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, mais de 50% das 56 escolas de Ensino Fundamental da Capital têm sistema de videomonitoramento. A promessa é cobrir a totalidade delas ainda em 2015.
Há alguns anos, todas as escolas tinham um guarda municipal fixo. Com menos efetivo - 240 dos 540 agentes trabalham em ocorrências nas ruas -, a Guarda passou a fazer rodízio. Além disso, segundo o comandante-geral da Guarda Municipal, Nilo Bottini, as equipes são postadas em lugares estratégicos entre os colégios e assim, em “no máximo 10 minutos”, chegam ao local que tiver sido alvo de criminosos ou de conflito interno. Também há palestras educativas para alunos, pais e professores.