ESPECIAL

Retratos de família são cruelmente desfeitos por criminosos que se aproveitam de falhas do sistema prisional gaúcho para roubar e matar

Textos: José Luis Costa  |  Edição: Lúcio Charão, Marcelo Miranda Becker e Ticiano Osório |  Arte e Design: Amanda Souza, Ana Cristina Machado e Gabriel Renner


A precariedade da segurança pública permite que um exército de presos esteja à solta com o aval de autoridades do Rio Grande do Sul. São 4,8 mil homicidas, traficantes, assaltantes, golpistas e batedores de carteira condenados pela Justiça, que deveriam estar recolhidos em albergue sob controle do Estado. Mas estão nas ruas favorecidos pelo descontrole, por erros e omissões na política prisional ao longo dos últimos anos.

O batalhão de criminosos em liberdade inclui apenados em prisão domiciliar, com tornozeleiras eletrônicas, e aqueles que, simplesmente, foram mandados para casa, com a orientação de esperar por vaga em unidades do regime semiaberto. Há uma inversão da lógica: em albergues da Região Metropolitana e de Charqueadas, há 400 apenados recolhidos, enquanto outros 2,3 mil presos estão bem longe das grades.


“A condenação virou advertência para comportar-se em casa, sem qualquer fiscalização. É mera censura moral, e isso não é função do direito penal.”

Ana Lúcia Cioccari Azevedo
Promotora que trabalha junto à Vara de Execuções Criminais (VEC) da Capital


Dezenas de presos batem à porta da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) a cada dia. E, em geral, escutam a mesma resposta: voltar outra hora. Em Novo Hamburgo, um desses apenados preferiu retornar para casa e para o crime. Em um assalto, matou o empresário Gabriel da Silva Rodrigues, 32 anos, em junho de 2014.

O Judiciário também padece de deficiências. A Vara de Execuções Criminais da Capital permitiu que um assaltante condenado em regime semiaberto ficasse à solta. Ao tentar roubar um carro, matou o estudante Edison Rupp da Cunha, 20 anos, em julho do ano passado.

O número expressivo de criminosos livres deixa a sociedade à mercê de ataques. Federico Guillermo Von Furth, 46 anos, engenheiro argentino que tentou mudar de vida ao se mudar para o Rio Grande do Sul, onde constituiu família, levou um tiro na cabeça durante um assalto, enquanto buscava o filho pequeno na escola — morreu de mãos dadas com o menino.

Orgulhoso de sua trajetória na Brigada Militar, o tenente Geraldo Koloski Peixoto, 50 anos, foi alvo de um ladrão de carro em Porto Alegre — morreu com dois tiros no peito.

Gabriel, Edison, Federico e Geraldo poderiam estar vivos. Mas hoje são personagens das quatro histórias contadas a seguir.

“O sistema das tornozeleiras (eletrônicas) não foi criado para cumprimento de pena. Além de não ser efetivo, cria a sensação de impunidade e insegurança. A opção do governo foi uma escolha ilegal, uma decisão contrária à sociedade.”

Débora Balzan
Promotora que atua junto à VEC

Fernanda com Bernardo e, na barriga, Maria Eduarda, seus filhos com Gabriel: “Não existe uma hora em que não pense nele” | FOTO: ARQUIVO PESSOAL


Só se falava em futebol naqueles dias de 2014, véspera de Brasil x México, em Fortaleza. Porto Alegre seguia entorpecida pela sua partida de estreia na Copa, França 3x0 Honduras, e vivia um frenesi pela chegada de milhares de holandeses e australianos para o segundo jogo.

A principal preocupação das autoridades era garantir aos turistas segurança padrão Fifa. Cerca de 2 mil PMs deixaram o Interior para vigiar o entorno do estádio Beira-Rio e de pontos de concentração de torcedores. Na Capital, longe dali, bandidos decretaram sofridas derrotas a cidadãos de bem.

O descontrole sobre apenados provocou em Novo Hamburgo, no Vale do Sinos, um trágico encontro entre o empresário Gabriel da Silva Rodrigues e o assaltante Ronaldo da Rosa Moreira, que perambulava ilegalmente pelas ruas naquele 16 de junho.

Nascido em uma família pobre de São Luiz Gonzaga, oito irmãos, pais separados, Ronaldo migrou com a mãe e o padrasto para a Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre, quando ainda era criança de colo. Aos sete anos, preferiu ir morar em Novo Hamburgo com uma conhecida da família a quem chama de tia.

— Minha mãe não tinha condições de me criar. Eram muitos filhos — contou a ZH.

Ronaldo cresceu no bairro Canudos, uma das mais violentas regiões da cidade. No Centro, a cinco quilômetros dali, vivia Gabriel, natural de Porto Alegre, que também se mudara para Novo Hamburgo, em companhia dos pais, donos da Regabi, uma construtora familiar. Em 2000, Gabriel, aos 18 anos, foi morar na Nova Zelândia. Garantia o sustento trabalhando como estivador no porto de Auckland e moldava os músculos, distribuídos em 1m87cm e 90 quilos. Em paralelo, atuava como modelo. Por lá, conheceu a carioca Fernanda, em uma temporada de intercâmbio.

De volta a Novo Hamburgo, em 2001, Gabriel retomou os estudos, e o pai, o engenheiro Renato Rodrigues, deu emprego ao filho como peão em uma obra. Gabriel carregava saco de cimento, virava massa e assentava tijolo. Chegava no serviço antes das 7h, dirigindo um Fusca velho, de estimação.

Em uma viagem ao Rio, Gabriel engrenou namoro com Fernanda. Antes do casamento, se viu forçado pela família dela a um “test-drive”.

— Ficou morando com eles no Rio. O pai da Fernanda tem uma construtora e deu emprego para o Gabriel. Queria ter certeza de que ele seria um bom marido — lembra a publicitária e escritora Maria Helena Rodrigues, 58 anos, mãe de Gabriel.

Em dezembro de 2004, Gabriel, aos 22 anos, e Fernanda, 21, desembarcaram casados em Novo Hamburgo para viver em uma confortável casa, apesar de alguns temores dela.

— Por causa da insegurança no Rio, sempre morei em apartamento. Nunca em casa. Tinha medo. Mas aceitei. A gente acreditava que em Novo Hamburgo seria mais tranquilo — recorda Fernanda.

Engenheiro diplomado, Gabriel, de peão de obra, tornou-se diretor na construtora do pai, dirigente do Sinduscon/NH. Erguia prédios em parceria com Fernanda, então formada em Arquitetura, e curtia o nascimento dos filhos Bernardo e Maria Eduarda. 



UMA ROTINA DE CRIMES

Com 15 anos, Ronaldo patinava nos estudos e se metia em confusão. Em junho de 2009, foi flagrado com uma faca no colégio. Em 2010, já fora de controle da tia, abandonou a escola no 5º ano. Para sobreviver, virou peão de obra. Quando se viu sem trabalho e sem dinheiro, mergulhou no submundo. Aos 17 anos, foi apreendido após assalto a um armazém. Passou 15 dias internado em uma unidade da Fase e foi punido com prestação de serviços comunitários, que não chegou a cumprir.

Um ano depois, passou cinco meses preso sob suspeita de envolvimento em uma invasão, de assalto e de sequestro. Acabou absolvido. Em janeiro de 2013, armado, Ronaldo assaltou uma obra. Pegou dois celulares e um óculos que tentou esconder no pátio da casa da namorada com quem vivia, mas foi capturado por PMs e condenado a seis anos em regime semiaberto.Durante cinco meses, a Justiça intimou três vezes a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) para que Ronaldo fosse transferido para um albergue. Em dezembro de 2013, uma ordem judicial autorizou Ronaldo a sair da Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ), em Charqueadas, e ir à Susepe para resolver o problema. Na prática, teria de implorar para ser recolhido a um albergue. Ele zanzou por foros da Capital e de Novo Hamburgo. Surgiu uma vaga no Instituto Penal de São Leopoldo, mas Ronaldo nunca apareceu. Ciente de que as polícias não vão atrás de foragidos como ele — são recapturados quando, por azar, caem em uma blitz —, Ronaldo voltou para casa.


A NOITE DO PESADELO

Em maio de 2014, Gabriel voltou de uma viagem que se tornaria inesquecível por ser a última. Com a mulher, os filhos, a mãe, a irmã e os sobrinhos, se divertiu na Disney, nos EUA. No mês seguinte, ele comandaria a comemoração surpresa dos 65 anos do pai, preparada pela mãe. O salão foi reservado, os convites, encaminhados. O Guri de Uruguaiana animaria a festa, na quarta-feira, 18 de junho.

Duas noites antes, Ronaldo se encontrou com amigos em Canudos. Conforme declarou à polícia, o plano era assaltar uma casa e roubar um veículo, a primeira moradia onde alguém estivesse entrando ou saindo de carro. Estava com Ismael Ritter Bobsin, envolvido em assalto, e Maicon Luís de Oliveira, até então sem passagens pela polícia. Os três embarcaram no Fiat Bravo de Josimar Nunes da Silva, com antecedentes por tráfico de drogas, e saíram a rodar pelo Rua Belo Horizonte, no bairro Boa Vista, onde Gabriel morava com a família.

Por volta das 19h daquela segunda-feira, 16 de junho, Fernanda entrou com uma Santa Fé na garagem. Ronaldo aproveitou o portão entreaberto e apontou para ela um revólver calibre 38 com numeração raspada (arma sem registro, provável fruto de roubo). O cão labrador da família avançou, Ronaldo ameaçou matá-lo. Gabriel saiu na porta da cozinha. Ronaldo, esquálido, 25 centímetros mais baixo, apontou a arma para a cabeça do empresário.

— O Gabriel deitou no chão, pediu calma, mostrou que não tinha arma. Estava sem camisa, era muito forte, e o bandido ficou muito nervoso — diz Fernanda.

Ronaldo exigia que Fernanda abrisse o portão para a entrada de outros dois homens. De repente, começou uma luta corporal entre Ronaldo e Gabriel. Houve cinco disparos. À polícia, Ronaldo disse que atirou porque sentiu que seria espancado. Um tiro perfurou o coração de Gabriel, que ainda conseguiu pegar o revólver e desferir coronhadas na cabeça de Ronaldo. Ao ouvir tiros, Ismael e Maicon fugiram com Josimar. O Bravo passou na frente da casa de Gabriel, e Ismael disparou contra as paredes da moradia. Antes de fugir, Ronaldo pegou o revólver de volta, apontou para Fernanda e apertou o gatilho. Por sorte, a arma falhou.

Fernanda ligou para os pais de Gabriel que moravam a minutos dali. Colocaram o empresário na caminhonete dela e saíram em busca de socorro.

Gabriel foi submetido a cirurgia no Hospital Regina, mas morreu pouco depois. Um motorista flagrou a fuga de Ronaldo, o atropelou de propósito e sumiu.Mancando de uma perna, Ronaldo foi capturado com a arma do crime por dois PMs. No dia seguinte, foi levado para a PEJ, em Charqueadas.


Maria e Renato, pais de Gabriel, convivem com o sofrimento da perda brutal de seu filho único | FOTO: RODRIGO RODRIGUES / ESPECIAL


HINO CANTADO NO CEMITÉRIO

Centenas de pessoas lotaram o Cemitério Jardim da Memória para a despedida de Gabriel, aos 32 anos. Sobre o caixão, a bandeira do Grêmio, uma das suas paixões (como o snowboard). Uma multidão cantou o hino tricolor. Em choque, a família havia esquecido que, certa vez, Gabriel pedira: “Quando morrer, joguem minhas cinzas sobre a Arena do Grêmio”.

Dias depois foram presos Ismael Maicon e Josimar. Em 29 de abril, Gabriel faria 33 anos. A família e os amigos lembraram o empresário com uma missa e lançaram 33 balões amarelos ao céu. Na mesma data, Ismael completou 30 anos, atrás das grades na Penitenciária Modulada de Montenegro.

Em 8 de julho, a 2ª Vara Criminal de Novo Hamburgo sentenciou os quatro réus por latrocínio. Aos 21 anos, Ronaldo foi condenado a 24 anos de prisão. Maicon, 26, e Ismael foram punidos com 22 anos. A pena de Josimar, 27 anos, ficou em 23 anos de cadeia.


CONTRAPONTO
O que diz a Susepe

Ele (Ronaldo) deveria sair do fechado diretamente para uma casa do semiaberto. Mas enfrentamos uma crise que é histórica. Essas saídas especiais são herança de muitos anos. Esta prática de liberação de presos do fechado para se apresentar na Susepe ocorre desde 2012. A Justiça entende que preso com progressão autorizada para o semiaberto não pode ficar no fechado. A Susepe recolhe enquanto tem vaga. No início, mandava o preso voltar em três dias, depois em uma semana. As vagas não aparecem. Houve interdições e não foram construídas novas unidades.


OS PERSONAGENS

O empresário Gabriel da Silva Rodrigues (à esquerda) foi assassinado por Ronaldo da Rosa Moreira (dir.) em 16 de junho de 2014. Ronaldo foi condenado a 24 anos pelo latrocínio (roubo com morte) | FOTO: ARTE ZH


“Eles falam o tempo todo no pai. Choram de saudade”

* Por Fernanda Zagury Rodrigues, viúva de Gabriel da Silva Rodrigues

“Graças a Deus, tive o prazer de conviver com meu marido. Namoramos três anos, faríamos 10 anos de casados. Éramos apaixonados, um casal que se dava muito bem, com um grande futuro pela frente.

O Gabriel era um marido e um pai maravilhoso. Meu amigão. Acordava, trocava fralda, fazia tudo pelos dois filhos. Aprendi a gostar de futebol com ele. Era gremista doente. Sou carioca, mas o Grêmio será para sempre o nosso time. Nosso filhos cantando o hino do Grêmio é a coisa mais linda do mundo. Ele falam o tempo todo no pai, choram desesperados de saudade.

Minha filha de quatro anos pergunta que horas ele irá chegar. Me desdobro para que o trauma seja o menor possível para os dois.

Ficar viúva de um marido como ele, com 31 anos, com dois filhos pequenos, é muito triste. Entraram na minha casa porque queriam dinheiro, joias, sei lá mais o quê. Queriam assaltar. Trocaria tudo o que tenho, tudo, tudo, poderia morar de aluguel, para ter meu marido de volta. Estragaram a vida de uma família. Quando eu fiz o reconhecimento (dos presos) na Justiça, começaram a rir, debochando. Quais são os valores? O que passa na cabeça desse ser humano? Não existe arrependimento, não existe nada. Meu filho de seis anos, um dia, falou para mim:

— Mãe, eu queria muito que os bandidos que mataram o papai ficassem muito tempo presos, mas saíssem de lá pessoas melhores. Ficassem pessoas boas.

Quando uma criança de seis anos, órfã, fala uma coisa dessas, isso me orgulha, me dá certeza de que estamos no caminho certo. A gente está criando uma pessoa, um cidadão, um ser humano. Tomara a Deus que um dia eu perdoe essas pessoas. Mas hoje está muito difícil. Meu marido não poderia morrer. O Gabriel pensava sempre em ajudar as pessoas. Poderia ser metido, era bonito, tinha dinheiro e uma família legal, mas era muito simples. Não existia quem não gostasse dele. Falava da mesma maneira com a pessoa mais pobre e a mais rica. Meus filhos têm o maior orgulho do pai.

Não existe uma hora em que não pense nele. Voltei a morar no Rio, não consigo voltar a trabalhar. A nossa casa, a nossa cidade, os nossos amigos, a vida que construímos, tudo ficou para trás. Viajamos bastante para visitar os avós, mas é muito triste. É uma dor que não passa, um vazio dentro do peito que não preenche nunca.

A única coisa que eu posso querer agora é justiça, para que outras pessoas não sintam a mesma dor que sinto em todos os momentos do meu dia. Pelo amor de Deus, que seja feita justiça.”

Faviane nos 15 anos de uma das quatro filhas, Stephanie: “Meu marido dedicou a vida à Brigada e morreu por falta de segurança” | FOTO: ARQUIVO PESSOAL


Adolescente infrator, Wagner Fagundes Stuczynski entrou para a vida adulta cometendo crimes, aos 19 anos. Atacava motoristas na zona norte de Porto Alegre. Foram três investidas, sempre fracassadas.

No primeiro roubo, em junho de 2010, Wagner e um comparsa, bêbados, saídos de um aniversário, fizeram refém o condutor de um Civic no bairro Cristo Redentor. Sem habilidade para carro automático, Wagner assumiu o volante, andando alucinado pela região até ser avistado por PMs.

No banco traseiro, a vítima, sob a mira de uma arma, rezava para não morrer. Em alta velocidade e pela contramão, Wagner raspou o automóvel em árvores, amassou veículos que cruzaram seu caminho até demolir o Civic contra um poste, no Porto Seco.

Preso em flagrante e condenado a sete anos e meio de cadeia, em maio de 2013 voltou para as ruas. Não havia espaço em albergues da Região Metropolitana, e a Justiça mandou que ele próprio procurasse vaga na Susepe.

Arrumaram um lugar para ele na Casa do Albergado Pio Buck, na Capital, e um emprego em caminhão de coleta de lixo. Mas ele suportou o serviço só por 11 dias. O trabalho era pesado demais para Wagner. Não aguentou correr atrás de dinheiro honesto e fugiu.

Solto nas ruas, Wagner permaneceu seis dias como foragido. Na tarde de 26 de maio de 2013, invadiu armado o carro de um representante comercial que estava parado nas imediações da Avenida Baltazar de Oliveira Garcia. Aproveitando-se de uma distração, o motorista pegou o revólver e amassou a cara de Wagner a socos e cabeçadas. Wagner tonteou, correu, mas foi pego pela vítima e entregue a PMs.

O caso ainda não foi julgado. Em dezembro de 2014, depois de um ano e meio atrás das grades, Wagner já tinha direito de voltar ao semiaberto. Graças à desorganização nos presídios, a Justiça o autorizou pela segunda vez a sair às ruas e procurar vaga em albergue. Caso contrário, seria vigiado via monitoramento eletrônico. Mas, naquele momento, não havia nem uma coisa nem outra.

Depois de 40 dias “em férias da cadeia”, Wagner calçou uma tornozeleira e foi para casa no bairro Rubem Berta. O equipamento durou apenas nove dias na perna dele. Sumiu do radar da Susepe em 25 de janeiro de 2015. A Susepe se deu ao trabalho de registrar a fuga nos sistemas da Secretaria da Segurança e da Justiça e lavou as mãos. Nem Polícia Civil, nem Brigada Militar, ninguém fez buscas para Wagner.


ORGULHO DE VESTIR A FARDA DA BRIGADA 

Filho de família humilde de Ijuí, no norte gaúcho, Geraldo Koloski Peixoto foi criado sem mãe desde os cinco anos. Passou fome quando criança e, aos 25 anos, viu na Brigada Militar a oportunidade, talvez a única, de ser alguém na vida. Estudou, formou-se em Direito, na Ulbra, e era idolatrado pelos irmãos.

Orgulhoso, fazia questão de vestir o uniforme de trabalho para os momentos mais importantes em família. Casou-se com o traje de gala de sargento, em 1996, e, em maio do ano passado, dançou a valsa dos 15 anos na festa de aniversário da filha Stephanie, com a farda de tenente do 19º Batalhão da Polícia Militar.


MORTO EM UMA TARDE DE FOLGA, À PAISANA

Em sua formatura, Geraldo ao lado da mulher | FOTO: ARQUIVO PESSOAL

No último 10 de abril, uma sexta-feira, Geraldo estacionava uma Captiva branca na Rua Rubens Rosa Guedes, no bairro Jardim Itu-Sabará, quando foi avistado por Wagner, que caminhava por ali. Geraldo, 50 anos, estava à paisana, de folga naquela tarde, dirigindo a caminhonete de um amigo. Wagner, armado com um revólver, pretendia, de novo, roubar outro carro.

— Perdeu, perdeu — gritou o ladrão.

O tenente esticou a mão e entregou a chave do veículo. O braço erguido fez aparecer um volume na cintura de Geraldo, e o assaltante atirou duas vezes no policial.

O oficial ainda tentou colocar em prática o que não fazia havia muito tempo. Servidor de setores de informática de quartéis, do Departamento Administrativo e do Hospital da BM, Geraldo ameaçou puxar seu revólver calibre 38. Mas a arma ficou presa sob uma cinta e a camisa que vestia.

É provável que, mesmo pegando a arma, ela não funcionasse. Ao examinar o revólver, peritos constataram munição oxidada no tambor. Peixoto ainda lutou com o ladrão, mas tombou sem vida. O bandido fugiu sem nada levar.

Procurando pelo matador de Geraldo, agentes da 14º DP receberam uma informação anônima cinco dias após o crime: o autor seria um homem conhecido como Mascote, que andava em um Tempra branco cuja primeira letra da placa era L.

Oliciais iniciaram uma busca por apelidos de criminosos no banco de dados da Secretaria da Segurança. Eram 12. Fotos dos suspeitos foram apresentadas a testemunhas que apontaram sem dúvida para a imagem de Wagner. E só existia um Tempra rodando no Estado com a placa começando com L. 

O registro do carro indicava como endereço uma vila na zona norte da Capital. Após nove dias de buscas, em 24 de abril policiais localizaram o Tempra, em uma área invadida perto do Sambódromo, no Porto Seco. Ao volante, Wagner. Armado com um revolver calibre 38 com a numeração raspada, ameaçou reagir, mas desistiu. Negou o crime, mas foi dominado e preso. Com Wagner, um outro homem que estava no Tempra também foi detido. É suspeito de pelo menos 15 roubos de veículos na zona norte da Capital.


CONTRAPONTO
O que dizem Susepe e BM

O monitoramento por meio de tornozeleira custa ao mês R$ 260 por preso, enquanto um preso convencional chega a R$ 1,8 mil. Quando o preso é monitorado, sabe-se onde ele está. Quando rompe a tornozeleira, soa um alarme. A central de monitoramento telefona para o apenado. Se ele diz que está em casa, uma volante da Susepe vai lá verificar. Se ele não atende, e o sinal é perdido, é lançado no sistema como foragido. A Polícia Civil, a Brigada Militar e a Justiça são informadas. A Susepe não vai atrás do preso. A Susepe não tem obrigação de ir atrás do preso. O major Ronie Coimbra, chefe comunicação social da BM, diz que a partir do rompimento da tornozeleira, o detento entra na condição de foragido no sistema. Quem investiga o homicídio é a Polícia Civil, afirma. Até a noite de sexta, a comunicação social da Polícia Civil não atendeu às ligações da reportagem.


OS PERSONAGENS

O tenente da BM Geraldo Koloski Peixoto (à esquerda) foi assassinado por Wagner Fagundes Stuczynski (dir.) em 10 de abril de 2015. O criminoso está detido e aguarda julgamento | FOTO: ARTE ZH


“E agora, o que o Estado vai fazer?”

* Por Faviane Peixoto, viúva de Geraldo Koloski Peixoto

“Em dezembro, ele me deu uma caminhonete e disse para nunca reagir a assalto. Ele não reagiu no primeiro momento. Só quando o bandido viu que ele estava armado. Ele fazia aula de tiro, atirava muito bem, mas não tinha o hábito porque sempre trabalhou em área administrativa. Acho que a camisa atrapalhou. Nem servia mais de tão apertada. Sempre foi muito vaidoso, não gostava de mostrar a barriga. Já tinha até separado para doação. Não sei porque vestiu naquele dia.

Nossa filha Brenda muitas vezes acompanhava o pai no quartel. Sempre amou tudo isto e cresceu dizendo que também vai ser militar. Vai completar 12 anos e espera as datas certas para estudar na Escola Tiradentes, como sempre prometeu ao pai. Cresceu ouvindo-o repetir com frequência uma frase:

— Tudo o que eu tenho devo à Brigada.

A Brigada era a vida dele. Ele casou uniformizado, foi à festa de 15 anos da nossa filha e falava que, quando ela casasse, levaria ela ao altar com a farda. Ele sonhou muito com a aposentaria. Faltava um ano. Fazia planos de descansar, curtir a vida. Um dia antes da morte, ele se sentiu mal. Estava infeliz por causa da transferência dele para o 19º BPM. Ele não esperava.

Me ligou chorando, reclamando de pressão alta. Sentiu dores no peito, achou que era um infarto. Sentiu medo de morrer e falou que, se acontecesse o pior, queria me agradecer pela família linda que dei a ele.

Naquela tarde em que morreu, estava em casa, queria descansar porque a gente tinha combinado de ir a um baile da terceira idade.

Deixou quatro filhas com 16, 12, seis e cinco anos. Todas nós sofrendo de depressão, desordem psicológica e financeira, tomando remédios, fazendo terapia. A pequena pensa que o pai virou estrela. Olha para o céu e abana, dizendo ‘oi, pai’. Não desejo para ninguém o que tenho passado.

É muito triste saber que meu marido dedicou a vida à Brigada para ajudar na segurança pública e foi morto justamente por falta de segurança em nosso Estado.

E, agora, o que o Estado vai fazer? Trazer meu marido de volta ninguém vai. E o assaltante, que deveria estar usando tornozeleira, porque estava solto nas ruas sem a tornozeleira?

Eu ainda quero ouvir o que o Estado tem a dizer sobre tudo isto, até porque vou procurar por justiça.”

Célia e o marido, Arlindo, na formatura do filho Edison como técnico em informática: “Era um anjo. Nunca deu trabalho” | FOTO: ARQUIVO PESSOAL


Em novembro de 2010, Robson de Oliveira Batista foi preso em flagrante após invadir, com um comparsa, uma casa na Vila Jardim, zona norte da Capital. Armada, a dupla agrediu duas mulheres e um homem com coronhadas, chutes e pontapés e roubou uma mochila com dinheiro, roupas e objetos.

Robson ficou cinco meses na cadeia. Em abril de 2012, dois dias depois de solto, foi preso por porte ilegal de arma e solto em menos de 24 horas. Robson sequer apareceu para se defender da acusação de roubo na 1ª Vara Criminal do Foro Regional do Alto Petrópolis.

Naquele mesmo abril, foi condenado a cinco anos e quatro meses de prisão em regime semiaberto. Com direito de recorrer em liberdade, tentou anular a sentença. Mas, em novembro de 2013, a 6ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado manteve a decisão.

Em março de 2014, o processo chegou à Vara de Execuções Criminais (VEC) da Capital. Deveria ser expedida ordem de prisão. Robson deveria ser recolhido a um albergue e começar a cumprir a pena. Mas o processo estacionou em uma prateleira da VEC, sob uma montanha de outros casos mais urgentes.

A prioridade sempre foi para a execução das penas envolvendo condenações mais pesadas, com réus já presos em regime fechado. O processo de Robson caiu na vala comum, e ele seguiu livre.


O SONHO INTERROMPIDO: ENTRAR NA FACULDADE

Naquele mesmo março, Edison Rupp da Cunha, 20 anos, recebeu diploma de técnico em informática. Natural de Três de Maio, no noroeste gaúcho, chegou a Porto Alegre ainda criança, filho único do pedreiro Arlindo, 45 anos, e da zeladora Célia, 50 – típicos migrantes do Interior à procura de oportunidades na cidade grande.

Morava em uma casa humilde, espremida entre apartamentos da Cohab Rubem Berta, na zona norte da Capital, mas sonhava com uma vida melhor e batalhava para cursar Ensino Superior.

Ao mesmo tempo que procurava emprego e se preparava para cursar faculdade ligada à computação, sua grande paixão, Edison curtia os prazeres da juventude ao lado de amigos, a maioria dos tempos em que estudou por cinco anos na Escola Estadual Florinda Tubino Sampaio, no bairro Petrópolis.

A turma dele costumava bater papo aos finais de semana em um residencial na Rua Felizardo Furtado, no mesmo bairro do colégio, e onde parte do grupo morava. Animados encontros noturnos dentro do condomínio tinham provocado multas aos moradores, e a galera passou a se encontrar na rua, em um pequeno centro comercial, no outro lado da calçada. Carros com portas e porta-malas abertos, dezenas de jovens curtindo música, bebendo, conversando.

Edison morava a 10 quilômetros dali, e os pais tinham receio dos perigos da madrugada para quem anda a pé. Ônibus demorados e taxistas temerosos de rodar pelo Rubem Berta dificultavam os passeios. Numa dessas noites, Edison pegou o Siena ano 2009 da família para sair. Quem dirigiu foi um amigo, já que ele não tinha habilitação.

Naquele sábado, 26 de julho de 2014, Edison pediu o carro emprestado, mas ouviu um não. O carro seria usado pelos pais para visitar um casal cujo filho recém tinha saído do hospital, e o estudante teria de ficar em casa. Mas a mãe dele teve uma pressentimento ruim.

— Tive um mal-estar e desisti de sair — recorda Célia. — Fizemos chimarrão e pipoca. Depois, jantamos.

Edison esperou um pouco, rodeou a mesa e pediu o carro de novo. Faria o mesmo da semana anterior.

— Fica em casa, está muito frio — disse Arlindo.

Mas o pai logo amoleceu o coração e entregou as chaves. Faceiro, Edison se arrumou rápido e, antes de fechar a porta da casa, virou-se para os pais:

— Não demoro.

Por volta das 2h do domingo, o entusiasmo do grupo de Edison foi quebrado por três homens que se aproximaram. Em uma espécie de arrastão, começaram a revistar as vítimas. Um dos ladrões entrou no Siena, procurando objetos. Armado, perguntou de quem era o Siena.

— É daquele cabeludo ali — respondeu um jovem.

O assaltante apontou a arma para Edison.

— Calma, calma, não precisa disso — respondeu o estudante.

Edison segurava um copo. Largou para puxar a chave do bolso da jaqueta e foi atingido por um tiro à queima-roupa no lado esquerdo do peito. O estudante caiu sem vida. O trio de bandidos ainda recolheu celulares de outras quatro vítimas e fugiu. De Edison, nada levaram.


Célia e Arlindo com o Siena em que Edison saiu para sua última balada de sábado à noite | FOTO: RICARDO DUARTE / AGÊNCIA RBS


A CAÇADA AO ASSASSINO

Cinco dias depois, a condenação de Robson pelo roubo da casa na Vila Jardim em 2010 foi registrada pela Justiça. No final de agosto, como se nada tivesse acontecido, Robson se apresentou à Justiça para cumprir a pena. Nesse meio tempo, sem qualquer pista, policiais da 2ª Delegacia de Homicídios “quebravam a cabeça” para localizar suspeitos da morte do estudante. Àquela altura, Robson já tinha sido condenado a mais dois anos pelo crime de porte ilegal de arma, em 2012, e foi recolhido ao Presídio Central.

A procura pelos envolvidos na morte do estudante custou seis meses de trabalho à polícia. Rastreando o telefone celular roubado de uma das vítimas, agentes chegaram a um receptador que usava o aparelho. Tinha comprado por R$ 20 de um usuário de crack.

Buscas na região levaram a polícia a descobrir, por meio de um informante, que o suspeito da morte de Edison era conhecido como Robson. Tinha um irmão gêmeo, passagens pela polícia e morava na Vila Jardim. Num dia inteiro, quatro agentes vasculharam o banco de dados da Secretaria da Segurança Pública pessoas com esse perfil. Até que localizaram a ficha de Robson. Em 15 de dezembro, atendendo a um pedido da polícia, a Justiça decretou a prisão preventiva de Robson. Ele negou autoria da morte do estudante, mas foi reconhecido por testemunhas e transferido para a Penitenciária Estadual do Jacuí, em Charqueadas. Em 17 de julho, a juíza Vanessa Gastal Magalhães, 1ª Vara Criminal do Foro Central da Capital, condenou o a 36 anos e 10 meses de prisão pelos crimes.


CONTRAPONTO
O que diz a Vara de Execuções Criminais da Capital

Entre janeiro e julho de 2014, a VEC foi reestruturada e desmembrada em duas. Nessa transição, foi realizado um mutirão cartorário, inclusive com ajuda de servidores de outras varas, para colocar os processos em dia. O TJ criou a 2ª VEC para melhorar o gerenciamento dos processos. A prioridade é o cadastro de processos de réus presos. O processo de Robson chegou à VEC em 11 de março, com condenação em regime semiaberto e com o réu solto. Não houve falha humana, o problema foi gerado por causa do volume de serviço. Muito trabalho e poucos funcionários.


OS PERSONAGENS

O estudante Edison Rupp da Cunha (à esquerda) foi assassinado por Robson de Oliveira Batista (dir.) em 26 de julho de 2014. Robson foi condenado a 36 anos e 10 meses de prisão | FOTO: ARTE ZH


“Tiraram tudo de nós. Estou destruída”

* Por Célia Rupp da Cunha, mãe de Edison Rupp da Cunha

“Viemos de Três de Maio para Porto Alegre quando ele tinha quatro anos. Ele estava feliz da vida. Teve um momento que, diante de dificuldades, comentamos a possibilidade de voltar ao Interior. Ele reagiu. Não queria voltar. Um dia me disse:

— Mãe, o futuro é aqui. Quero fazer faculdade.

Mas ele não chegou lá. A gente está tentando se recuperar, mas é muito difícil. Esse bandido ficou na rua e levou nosso filho. Ele era tudo para nós. E tiraram tudo de nós. Poderiam levar carro, celular, tinha seguro, mas não levaram nada.

Era um anjo para mim. Nunca deu trabalho. Fazia tudo o que a gente pedia. Tentei educar da forma que acho mais correta. Dei amor, carinho, sempre batalhei para ele estudar. Eu levantava às 6h e voltava para casa às 19h. Ele sempre sozinho, fazendo tudo certinho. Entrava na porta e ele sempre sentado aqui na sala, me esperando.

Quando ele era pequeno, eu levava para uma creche municipal. Aos oito anos, ele mesmo disse que não precisava ir mais. Que deveria dar lugar para outras crianças, mais necessitadas. Ficava sozinho em casa. E eu, pelo telefone, monitorava os passos dele. Ligava às 10h para levantar. Às 11h para almoçar. Ao meio-dia para se arrumar. Às 12h15min eu dizia, agora pode ir para o colégio.

Era um menino de bem com a vida. Aos 17 anos, fez três desfiles como modelo. O que ele mais gostava era de videogame.

A diversão eram jogos pela internet. E passava horas aqui em casa com amigos, todos em volta de computadores. Desde os nove anos, fez vários cursos de informática. Em março do ano passado, formou-se em técnico em informática. Tinha ido bem no Enem e queria fazer faculdade.

Era a segunda vez que saía com o nosso carro. O motorista era o Wagner, um amigo de infância, porque ele não tinha carteira. Queria aprender a dirigir, e a gente o incentivou a trabalhar e juntar dinheiro parar fazer autoescola. Ele dizia que o primeiro salário era para tirar a carteira de habilitação. Nos últimos tempos, estava ajudando o pai. Mas já tinha arrumado emprego. Ia começar a trabalhar naquela segunda-feira, em uma loja de conserto de computadores.

Estava bem faceiro naquela noite. Disse que não ia voltar muito tarde e saiu. Na porta, olhou para trás e disse: ‘Mãe e pai, amo vocês. Já volto.’ Só que não voltou mais.

A dor é muito grande. Tem gente que me olha e diz: ‘Mas tu reagiu bem’. Por fora, posso parecer assim. Mas, por dentro, estou destruída.”

Francisco pergunta à mãe, Cláudia: “E se o pai que estava no caixão era falso, e o verdadeiro foi viajar e um dia volta?” | FOTO: ARQUIVO PESSOAL

Para o argentino Federico Guillermo Von Furth, o Rio Grande do Sul era a terra prometida. Nascido em Santa Fé, engenheiro eletrônico formado pela Universidade Nacional de Rosário, Federico buscava um novo rumo para a vida afetiva e profissional, em Passo Fundo, no norte gaúcho.

Tinha terminado um casamento na Argentina e começava a expandir pelo Brasil os negócios de uma empresa de software da qual era sócio. Em 2002, abriu a Capebras, na Vila Rodrigues, área central da cidade, e em 2006, conheceu a contadora Cláudia Karczeski.

Da união, nasceu Francisco, em 2009. Radicado em Passo Fundo, em paz com a família e com o trabalho, Federico era otimista nato. Bem-humorado, jamais reclamava de infortúnios e acreditava que tudo ia dar certo sempre.

Durante os jogos da Copa do Mundo de 2014, vestiu a camiseta da seleção argentina para reverenciar a pátria, mas sem deixar de torcer pela terra que o acolheu. Diante do espanto de vizinhos, estendeu uma bandeira com as cores do Brasil na sacada só para ver a alegria no rosto do filho, devidamente fardado de verde e amarelo.

A família morava em um apartamento, andava em um Golf escuro com uma década de uso, e o engenheiro se preparava para satisfazer um desejo de Francisco.

— O menino insistia para o pai se casar com a mãe — conta o advogado Tadeu Karczeski, 64 anos, cunhado de Federico, diretor da Companhia de Desenvolvimento de Passo Fundo, órgão da prefeitura municipal.

Enquanto não chegasse ao fim o processo de separação judicial do primeiro casamento na Argentina, o engenheiro se sentia impedido para trocar alianças com a contadora. Em 24 de abril deste ano, Cláudia fez 45 anos. No dia seguinte, Federico completou 46. Tudo sem comemorações. Os parentes mandaram parabéns e cobraram comes e bebes, mas o engenheiro desconversou. Estava organizando uma celebração mais importante, e com doces e salgados.

— Quando perguntei pela festa de aniversário, ele respondeu: “Vou pedir a mão da tua irmã em casamento” — lembra Karczeski.

Federico, enfim, recebera a notícia de que estava oficialmente livre para atender aos apelos do caçula. Só esperava a chegava da filha mais velha, que vive na Argentina, para organizar a cerimônia.


GRADES SERRADAS PARA ESCAPAR DO PRESÍDIO

Infrator na adolescência, Leandro Xavier de Ramos, o Tuiuiú, hoje com 19 anos, passou um período na unidade da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase), em Passo Fundo, mas não se corrigiu. Em abril de 2014, ele roubou com outro jovem R$ 800 e cigarros de um mercado, de “cara limpa”, distante cinco quadras da própria casa. Segundo o comparsa, o crime visava obter dinheiro para comprar drogas.

Preso três meses depois, Leandro serrou grades da janela da cela número 15 da galeria C, pulou para o pátio, escalou um muro e fugiu do Presídio Regional de Passo Fundo. Em 48 horas, estava de volta à cadeia, recapturado.

Em janeiro de 2015, foi condenado pela 1ª Vara Criminal de Passo Fundo a seis anos e oito meses de prisão pelo assalto ao mercado em regime semiaberto e transferido para o Instituto Penal, anexo ao presídio, para cumprimento da pena. Como ele tinha fugido antes, o caso gerou um processo disciplinar.

Em 30 de março, a Vara de Execuções Criminais determinou a suspensão de todos os benefícios externos de Leandro – saídas para trabalho ou passeio. E ele deveria regredir para o regime fechado. Mas nem deu tempo de a ordem judicial ser cumprida. Na madrugada de 5 de abril, possivelmente já sabendo da decisão, Leandro, outra vez, serrou barras de ferro de uma janela e fugiu. Apenas dois agentes cuidavam de mais de 200 apenados.

De volta às ruas, Leandro se juntou a Alessandro Menitriel Canto, 27 anos de vida e 26 anos de condenações por quatro assaltos. Ele também tinha fugido da mesma cadeia 19 dias antes.


Pai presente, Federico se mudou em 2002 para Passo Fundo, onde conheceu Cláudia e tiveram Francisco | FOTO: ARQUIVO PESSOAL


ASSASSINADO AOS OLHOS DO FILHO DE SEIS ANOS

No final de tarde do último 29 de abril, uma quarta-feira, o engenheiro Federico, como de hábito, saiu do trabalho para buscar na escola o filho Francisco, de seis anos. Passou em um supermercado e retornou para a empresa. A intenção era fechar o estabelecimento e depois seguir para casa. O relógio marcava 19h10min. Federico estacionou, desceu com o menino e apertou o botão do alarme do Golf. Em uma fração de segundos, foi abordado por um homem armado – era Leandro.

Não há certeza do que aconteceu nos instantes seguintes, mas tudo indica que o engenheiro fez algum gesto para proteger o filho. Como reação, o bandido desferiu um tiro no rosto de Federico. De mãos dados com Francisco, o pai desabou, quase caindo sobre a criança.

Leandro e Alessandro correram para dentro de um Brava preto, visto por populares abandonando o local em alta velocidade. PMs foram acionados e começaram buscas. Socorrido por uma ambulância dos bombeiros, Federico morreu a caminho do Hospital São Vicente de Paulo.

Em uma das saídas da cidade, pela ERS-324, o Brava suspeito foi parado. Havia só o motorista no carro, mais três jaquetas. Sem saber explicar de onde vinha e para onde ia, o homem foi levado a uma delegacia da Polícia Civil.

Identificado como Alexsandro da Silva Canto, 28 anos, sem antecedentes criminais, revelou que um dos homens que atacaram o engenheiro era seu irmão, Alessandro Menitriel Canto. Dois dias depois, a polícia prendeu Leandro.


A REVOLTA DA VIÚVA

Ainda detido, Leandro aguarda julgamento. Cláudia, a viúva de Federico, aguarda respostas:

— Como podia estar solto um sujeito que vê um pai de mãos dadas com uma criança de seis anos e atira à queima-roupa? De quem é a responsabilidade? Por que perder as pessoas de bem já está sendo visto como uma coisa normal? Até hoje, ninguém me procurou para saber como estamos, como vamos viver daqui para frente. Que país é esse em que o cidadão trabalha, gera empregos, paga impostos e, quando tem a vida tirada por um marginal, apenas vira mais um na estatística dessa violência desenfreada? É muito difícil acreditar na Justiça, mas ainda tenho um pontinho de esperança de que ela seja feita, para que outras famílias não sintam a dor que estamos sentindo.


CONTRAPONTO
O que diz a Susepe

Por meio de nota, a Susepe afirma que informou o Departamento de Informações da Polícia Civil (Dinp), a juíza da Vara das Execuções Criminais de Passo Fundo e o promotor público do município sobre a fuga do apenado. Foi expedido um mandado de busca, e o detento foi recapturado e recolhido ao Presídio Regional de Passo Fundo. (Como consta na reportagem, Leandro Xavier de Ramos ficou quase um mês foragido, e foi nesse intervalo de tempo que assassinou Federico Guillermo Von Furth.)


OS PERSONAGENS

O engenheiro Federico Guillermo Von Furth (à esquerda) foi assassinado por Leandro Xavier de Ramos (dir.) em 29 de abril. Leandro está preso e aguarda julgamento | FOTO: ARTE ZH


“Eles vão ficar presos para sempre?”

* Por Cláudia Karczeski, viúva de Federico Guilermo Von Furth

“— Mãe, agora somos uma família de dois — foi uma das frases de nosso filho quando voltamos para casa e ele se deu conta de que não havia mais ninguém lá.

Desde aquele triste 29 de abril, não tenho feito outra coisa a não ser tentar amenizar o sofrimento dele. É doloroso ouvir a pergunta:

— Mãe, os bandidos que mataram meu pai também matam crianças?

Para que ele siga acreditando na vida, na polícia, na Justiça, respondi que não, mesmo sabendo que para esse tipo de gente a vida dos outros não vale nada.

— O meu pai sempre me protegia, e me protegeu dos bandidos — diz Francisco.

Em dias de futebol, quando estouram foguetes, ele fica com muito medo e corre para me abraçar. Vem à mente o barulho que tirou a vida do pai enquanto o segurava pela mão.

— Mãe, os tiros atravessam paredes de tijolos? E se os bandidos entrarem em nosso prédio vão encontrar nosso apartamento? E se o pai que estava no caixão era falso, e o verdadeiro foi viajar e um dia volta?

Diante de tantas perguntas e lágrimas, além da dor da perda é preciso ter forças para pensar e responder a ele que nada mais de ruim vai acontecer, que os bandidos estão presos e que estamos seguros, e lá vem outra pergunta:

— Eles vão ficar presos para sempre?

Respondi que sim, mesmo sabendo que não é verdade, mas para protegê-lo, para que consiga ir à escola, ir à praça, retomar a alegria que sempre foi meu maior orgulho, uma criança feliz que já acordava sorrindo. Assim consegue viver até que cresça e entenda como funcionam as leis de nosso país e a quem realmente protegem.

Uma noite presenciei a cena mais emocionante e dolorosa para uma mãe. Nosso filho saiu na sacada de casa, apontou para o céu e falou:

— Pai, minha mãe colocou o meu pijama virado.

Voltou e disse:

— Pronto, mãe, já contei para meu pai. Agora ele já está sabendo.

Não tem como não chorar diante de tanta pureza de sentimentos. Até quando crianças inocentes vão ter de apontar o céu para falar com os pais que são covardemente arrancados de suas vidas?”

Instituto Penal de NH reduziu fugas a partir da atuação do movimento PAZ Novo Hamburgo. FOTO: Rodrigo Rodrigues, Especial


Qual a solução para o semiaberto? Manter o sistema atual, com melhorias na estrutura e na vigilância ou acabar com ele, instituindo um regime único, o fechado autorizando a progressão apenas na fase final do cumprimento de pena com a liberdade condicional? O tema divide opiniões, é discutido há décadas por autoridades e volta ao centro dos debates à medida que cresce a criminalidade protagonizada por apenados.

Pelo menos duas grandes reformas na legislação penal elaboradas por juristas chegaram ao Senado entre 2012 e 2013, mas seguem em estudo. As propostas não terminam com o semiaberto e uma delas até propõe a progressão de regime antecipada para o apenado que estiver em presídio superlotado. No Supremo Tribunal Federal o julgamento de um recurso, provocado por más condições dos albergues gaúchos, aguardado desde 2011, pode abrir as celas para 66,5 mil apenados do semiaberto no país.

Nos últimos tempos, o tema envolve com mais intensidade a sociedade. Em junho, uma lista com 100 mil assinaturas partiu do Rio Grande do Sul rumo a Brasília, propondo a congressistas o fim do regime semiaberto. A iniciativa foi do Movimento Paz Novo Hamburgo em parceria com ONG Brasil sem Grades, organizações gaúchas que propõem medidas para redução da violência e maior rigor na legislação penal.

"A meta do Brasil deve ser a de eliminar o déficit de vagas nas cadeias, priorizando unidades do semiaberto."

Ana Lúcia Cioccari Azevedo
Promotora que atua junto à Vara de Execuções Criminais (VEC) da Capital

O Paz Novo Hamburgo surgiu em 2014, após o assassinato do empresário Gabriel da Silva Rodrigues, 32 anos, vítima de um assaltante, foragido do semiaberto, um dos casos abordados na edição dominical de Zero Hora.

— Acreditamos que o aumento do tempo no regime fechado vai reduzir a criminalidade, já que a medida por si só inibe a prática ilícita. Afinal, são mais anos de confinamento e longe das ruas — diz o empresário Luiz Fernando Oderich, presidente da ONG Brasil Sem Grades.

O modelo defendido pelas duas entidades vai ao encontro da posição de juízes gaúchos que atuam em varas de execução criminal. Em 2013, magistrados encaminharam uma sugestão que chegou ao Senado na qual autores de crimes com morte, por exemplo, passariam metade do tempo de condenação no regime fechado e só depois poderiam sair das grades para a liberdade condicional. Mas essa posição encontra divergências dentro do próprio Tribunal de Justiça do Estado e entre outras autoridades e especialistas. O advogado Aury Lopes Junior defende a vigência dos regimes progressivos.

— Querem acabar com o semiaberto não porque ele seja ruim, mas sim pela incompetência de fiscalizar e de manter casas prisionais adequadas. Agora, diante da falência do sistema prisional, aceito discutir proposta de mudança — observa o criminalista, professor universitário e doutor em Direito Penal.

"Se o apenado voltar a cometer crime durante o livramento condicional, retorna para o fechado. Não pode ter essa função de entra e sai. Isso é que aumenta a criminalidade, cria as quadrilhas, mantém as facções. É preciso pôr fim a isso com mudanças no Código Penal e a Lei de Execução Penal."

Traudi Beatriz Grabin
Juíza da VEC regional de Novo Hamburgo

A defensora Ana Paula Pozzan, dirigente do Núcleo de Defesa em Execução Penal da Defensoria Pública Estadual, concorda que o semiaberto virou um produtor de criminalidade, mas é favorável à manutenção dos albergues, aliado a uma ampla reforma da política prisional.

— Deveríamos ter casas sem superlotação, com condições dignas de cumprimento de pena em todos os regimes. O Estado perdeu o controle de cadeias. Tem preso que recebe assistência, como material de higiene e limpeza, de uma facção. Quando vai para o semiaberto tem de pagar, assaltando, matando. Há casos em que o apenado não quer ir para o semiaberto com medo de morrer.

Promotora que atua junto à VEC na Capital apoia a manutenção do modelo atual em condições adequadas.

— A tendência das pessoas é ser contrária ao semiaberto porque não funciona de acordo com a lei. Mas o semiaberto serve para o apenado ser testado, sair para trabalhar. O Estado tem de investir em albergues — afirma a promotora Débora Balzan.


Instituto Penal de Viamão que, em 2010, pegou fogo, está desativado. FOTO: Ronaldo Bernardi, BD


ESTADO CONDENADO POR NÃO GERAR VAGAS

A falta de investimentos em presídios provoca superlotações e interdições de presídios, soltura de presos e sensação de insegurança à sociedade. Como se tudo isso fosse pouco, também gera prejuízos aos cofres públicos.

Pela inércia na geração de vagas, a promotora Luciana Moraes Dias, à época na Promotoria de Justiça de Execução Criminal, ingressou com uma ação civil pública, resultando na condenação do Estado, em 2010, pelo Tribunal de Justiça do Estado.

A sentença, de outubro de 2013, aponta que o Estado deve pagar multa diária de R$ 10 mil por deixar de criar vaga para os regimes aberto e semiaberto e R$ 10 mil para regime fechado.

A multa por descumprimento da sentença passa de R$ 12 milhões (sem considerar juros). A Procuradoria-geral do Estado recorreu ao Supremo Tribunal Federal, questionando a legitimidade do Judiciário em intervir na geração de vagas. O recurso não tem efeito suspensivo. Se confirmada a condenação, o dinheiro deverá ser depositado em uma conta em favor de um fundo de reaparelhamento do sistema prisional.

Além disso, desde o ano passado, vem surgindo com frequência condenações do Estado nas quais tem de indenizar presos com dinheiro por deixá-los no regime fechado quando já deveria ter providenciado a transferência para o regime semiaberto. Em um dos casos, um assaltante que foi parar no Presídio Central de Porto Alegre por roubar R$ 500, terá direito a receber R$ 2 mil por sofrer abalo moral provocado pelo Estado.

O Estado também é alvo de investigação da Promotoria de Justiça de Defesa do Patrimônio Público. Um inquérito civil, conduzido pela promotora Daniela Schneider, apura a escassez de vagas no semiaberto e as razões que levaram gestores o fechamento de albergues, além buscar informações se ocorreram eventuais atos de ilegalidade, de improbidade ou de má fé.

A construção de albergues ficou em segundo plano, a partir da aposta do monitoramento de apenados por meio de tornozeleiras, projeto contestado pelo Ministério Público e que anda aos trancos e barrancos. O próprio MP já expediu recomendação à Secretaria de Segurança Pública para que o equipamento não seja utilizado indevidamente — somente para presos em saídas temporárias de albergues e não para cumprimento de pena em casa. Das 4 mil tornozeleiras previstas, apenas 1,3 mil estão em uso.



MORTE DE EMPRESÁRIO MUDOU ALBERGUE EM NH

O assassinato de Gabriel da Silva Rodrigues, vítima de um assalto frustrado por um foragido do semiaberto em junho de 2014, provocou comoção em Novo Hamburgo e desencadeou uma mobilização incomum no Estado.

Depois de chorar a morte do jovem empresário de 32 anos e protestar contra a violência, amigos, parentes e representantes da comunidade “arregaçaram as mangas”. Embora contrário à existência do regime semiaberto, o grupo decidiu promover melhorias do albergue local, a única casa prisional da cidade.

A primeira iniciativa foi criar o movimento PAZ Novo Hamburgo, composto por 42 entidades, entre ONGs, sindicatos, clubes e escolas.

— A morte do Gabriel foi um estopim do sentimento de insegurança na cidade. O luto resultou não em crítica, mas sim em um novo tempo, tempo de somar forças. A sociedade tem de fazer a sua parte e dá para fazer — afirma a coordenadora do PAZ, a advogada Andrea Schneider.

A partir da mobilização do grupo foram obtidos recursos junto à Prefeitura e à Câmara de Vereadores da cidade que possibilitaram a instalação de nove câmeras de vigilância no albergue. Os equipamentos registram imagens dentro e no entorno do Instituto Penal de Novo Hamburgo, monitoradas por agentes penitenciários e compartilhadas com a Guarda Municipal e a Brigada Militar.

— Se alguém é flagrado com um celular no pátio, vai para o castigo durante 10 dias. Presos reclamam que aqui está pior que no regime fechado — afirma o diretor do albergue, César Corrales.

As câmeras ajudaram a reduzir fugas. Desde a instalação, em 24 de março, foram registrados quatro casos. Antes, desapareciam, em média, 20 presos a cada mês.

O PAZ Novo Hamburgo também firmou parcerias para fiscalizar os presos que trabalham fora do albergue. Uma vez por mês, integrantes do movimento passaram a acompanhar agentes penitenciários, guardas municipais, policiais civis e militares, em blitze para checar se, de fato, apenados estavam no serviço — dos 240, cerca de 120 tem atividade externa.

Na primeira inspeção, em fevereiro, sete detentos não foram encontrados no emprego. Na última, apenas dois. Quem não é localizado no trabalho responde a um procedimento administrativo disciplinar, podendo regredir para o regime fechado. E o empregador, que abona frequências indevidas ou emite documento falso de contratação de apenado, é indiciado pela polícia por falsidade ideológica.

O PAZ Novo Hamburgo também montou um programa no qual estagiários são alocados em delegacias da Polícia Civil, em funções administrativas, liberando mais policiais para investigações de rua. Ainda não foi possível aferir se essas ações repercurtiram nos índices violência em Novo Hamburgo, mas 30% dos apenados do albergue pediram transferência para outro lugar.

Desembargador vê que lei é perfeita na teoria, mas, na prática, não funciona. FOTO: Claudio Vaz, BD


Indicado pela assessoria de comunicação do Tribunal de Justiça do Estado, o desembargador Sérgio Miguel Achutti Blattes falou com Zero Hora sobre o crise do regime semiaberto no Rio Grande do Sul.


Qual sua opinião sobre o semiaberto?

A lei, como está redigida, me parece perfeita. A pena não é só punitiva. Visa, também, ressocializar o preso, gradualmente, ser reinserido na sociedade. O sistema, me parece, tecnicamente, perfeito. Mas, na teoria, a coisa é uma. Na prática, é outra.

Hoje, tem delinquentes praticando crimes estando no semiaberto e no aberto. Isso não significa nenhum demérito a esse sistema porque também sabemos que tem presos do regime fechado praticando crimes. Então, o problema é da estrutura penitenciária e não da legislação.


Juízes de execução concederam milhares de prisões domiciliares para presos do semiaberto por falta de vaga nos albergues. O senhor concorda?

Se o preso tem direito de estar no semiaberto, eu não posso colocar ele em um regime mais gravoso que é o fechado. Mas posso colocar em um menos gravoso.

Se o Estado não tem condição de dar a ele o que a lei lhe garante, o Estado não pode dar a ele menos do que ele tem direito. Vamos imaginar o preso como um de nós, que, eventualmente, cometa um crime, e tenhamos direito ao semiaberto, e por falta deste estabelecimento, nos manter no fechado. Seria a mesma coisa de que um plano de saúde ofereça um quarto semiprivativo, mas só tenha privado. Ele não pode mandar o paciente para o ambulatório.


É levado em consideração o direito individual do preso. Não seria melhor preservar o direito coletivo da sociedade, à medida que ele pode cometer crimes nas ruas?

O preso tem de ter comportamento que autorize a progressão. Ela não é obrigatoria, não é automática. Ela contém requisitos objetivos e subjetivos. O preso pode implementar tempo e não progredir de regime. Mas, mesmo que ele fique todo o tempo preso, não há como prever que ele vai sair dali e vá cometer um crime.


Mesmo concedendo milhares de prisões domiciliares não surgiram vagas nos albergues. Por quê?

O Estado não providencia vagas. Não há investimentos nesta área. Vivemos em uma época de penúria, em que o preso é tratado como lixo humano, infelizmente. Ao ser preso, perda toda a dignidade. Ele não é preso, é depositado.


O Estado lavou as mãos na geração de vagas, à medida que foram concedidas prisões domiciliares?

O Estado não é o Poder Executivo. Os três poderes Executivo, Legislativo e Judiciário compõem o Estado. Se há falha do Judiciário em liberar os presos, também isso passa pelo Legislativo, que faz leis anacrônicas, e passa pelo Executivo que não dá os meios necessários. Então, esse é um problema do Estado tripartido.


Além de prisões domiciliares, há concessão de saídas temporárias das cadeias para o preso ir na Susepe pedir uma vaga no semiaberto. Qual sua opinião?

Quem comanda os presídios é a Susepe, subordinada ao Executivo. Quando o juiz diz ao preso que não tem vaga, e o preso diz que tem esse direito, então, o juiz diz: eu te dou a chance de ir na Susepe buscar uma vaga.


Isso pode gerar insegurança para a sociedade?

O preso quando está em condição de ir para o semiaberto, é porque teve bom comportamento carcerário. Tem as condições legais que permitem ele ser inserido na sociedade gradualmente. Agora, a sociedade vai correr risco sempre. Mesmo que uma pessoa fique 30 anos presa, ninguém garante que no dia que sair da prisão não vá cometer um crime.


E o uso de tornozeleira eletrônica?

Sou a favor. Mas é preciso monitoramento, não só pelo sistema eletrônico, mas também através de fiscais que vão lá verificar, se efetivamente, se o sujeito está naquele lugar ou deixou a tornozeleira pendurada em um cabideiro.


Tem um caso no qual um preso rompeu o equipamento, e ninguém não foi atrás dele, e ele matou um tenente da BM...

É exatamente o que estou dizendo. O problema é que se coloca a tornozeleira como se ela, por si só, resolvesse o problema.


Como o senhor avalia esses quatro casos de latrocínios praticados por apenados: um preso ficou na rua porque a justiça não recolheu para o semiaberto, o segundo fugiu do albergue, o terceiro não se apresentou e um quarto rompeu a tornozeleira?

São falhas do sistema. Poderia ser acrescentado nesta lista os crimes praticados dentro da Pasc. Se o preso encarcerado está cometendo ou mandando cometer crime lá fora, o que dizer dos demais.   

No Senado Federal

Pelo menos duas alterações de lei estão em debate, relacionadas ao tempo de pena e à progressão de regime:

  • A reforma do Código Penal (PLS 236) tramita na Senado desde julho de 2012. Em dezembro de 2013, chegou à Comissão de Constituição de Justiça, onde permanece
  • O projeto mantém o atual modelo de cumprimento de penas, mas estipula uma nova escala para progressão de regime aumentando o tempo no fechado de três quintos para dois terços (para crime hediondos)
  • A reforma da Lei de Execução Penal (PLS 513) começou em abril de 2013, chegou ao Senado em dezembro daquele ano e segue na Comissão de Constituição e Justiça
  • O projeto proíbe presos em delegacias de polícia, prevê melhorias no serviços de saúde e educação ao apenado e prevê a progressão de regime antecipada caso a penitenciária esteja lotada, ponto que deve gerar intenso debate


No Supremo Tribunal Federal

Desde maio de 2011, o STF avalia a possibilidade de mandar para casa presos do semiaberto por falta de vagas ou condições indignas nos albergues brasileiros:

  • O tema está nas mãos do ministro Gilmar Mendes, relator do Recurso Especial Nº 641320, interposto pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul que se insurgiu contra a decisão do Tribunal de Justiça do Estado de conceder prisão domiciliar para um apenado do semiaberto, de Jaguari, em 2009
  • Em maio de 2013, durante dois dias, Mendes organizou debates públicos sobre o assunto no STF, inclusive com a presença de autoridades gaúchas, para obter informações que o ajudem a decidir seu voto. Caso o ministro confirme a decisão do TJ, a tendência é de que juízes de todo o país sigam a orientação do STF, concedendo prisões domiciliares em massa. O Brasil tem 66,5mil presos no semiaberto. No Rio Grande do Sul, são 7,6 mil sendo que 1, 3 mil já estão em casa, usando tornozeleiras eletrônicas.  
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