Diário de uma conquista
Como foram os 30 dias decisivos que levaram o Brasil-Pel à Série B
Texto: Jones Lopes da Silva (jones.silva@zerohora.com.br) | Edição: Francisco Luz (francisco.luz@zerohora.com.br) | Foto de capa: Felix Zucco/Agência RBS
Um mês antes do acesso do Brasil-Pel à Segunda Divisão do Campeonato Brasileiro, Zero Hora acompanhou diariamente os bastidores do trabalho da comissão técnica e dos dirigentes, desde as últimas rodadas da fase de classificação da Série C até o jogo contra o Fortaleza
Expectativa e comemoração
O árbitro paulista Marcelo Aparecido de Souza mandou o jogo correr na Arena Castelão. Eram 49 minutos do segundo tempo, desesperadamente o Brasil se defendia, o Fortaleza aflito buscava um único gol, e o administrador Vinícius Colvara torcia quase chorando à espera do fim do jogo vidrado nas televisões do Zequinha Beer, um bar encravado abaixo das arquibancadas do Estádio Passo D’Areia, na zona norte de Porto Alegre. Vinícius estava ali porque o amigo e atacante Gustavo Papa tinha lhe garantido por WhatsApp de Fortaleza que o Brasil voltaria à Série B do Brasileirão naquela tarde.
Vinícius e uma centena de torcedores tomaram, com charanga e churrasco, o reduto dos xavantes que moram na Capital. Ajoelhado à frente da televisão, o aposentado Geraldo Santos, 80 anos, rezava contraído, em meio a uma aflição de gente se contorcendo aliviados a cada ataque do Fortaleza com defesa de Martini. Havia mais torcida no bar do lado de fora do Zequinha do que no jogo que recém havia terminado entre São José e Lajeadense, pela Copa Valmir Louruz.
Quando acabou a tortura, às 17h57min de sábado, o Brasil havia redimido sua história (desde 2000 não disputava a Série B do Brasileirão) e resgatado o futebol gaúcho (desde 2010 sem representante na competição). Do vestiário festivo com champanha e gritos de “rumo à Série B, rumo à Série B”, Papa gravou mensagem aos xavantes.
– Foi difícil, mais uma vez conseguimos esse acesso. Quero agradecer aos gaúchos que pararam para nos ver. É xavante na B de Brasileiro – mandou o recado pelo whats e enviou a Vinícius um dos primeiros selfies com o grupo comemorando aos pulos.
Mensagens anteriores trocadas antes do jogo com amigos e parentes em Pelotas não eram tão festivas e relatavam o clima pesado do jogo decisivo. Cerca de 500 torcedores tomaram a área em torno do hotel da delegação à beira-mar e estouraram centenas de rojões.
A saída de Porto Alegre foi mais calorosa. Perto de 20 xavantes da Onda e a Invasão Xavante, as organizadas xavantes da Capital, levaram mini charanga ao embarque e cantaram o hino “Brasil, Brasil, Brasil/As suas cores são nosso sangue, a nossa raça...” Isso durante o meio da tarde da quarta-feira do temporal que assolou a cidade.
Um deles, o empresário Márcio Vaz, carrega as marcas dos pontos ao rasgar 10 centímetros de costas pulando no alambrado do estádio do Taguatinga em comemoração ao gol de Nena contra o Brasiliense, o jogo que deu nos pênaltis o acesso à Série C em 2014. Ele diz:
_ Somos aqui mais de 2 mil, somos a terceira maior torcida de Porto Alegre.
O supervisor Moisés Von Ahn passou monitorando as redes sociais e o saguão do hotel.
– Pensem na virada de ano – contou Moisés
As ameaças surgiram logo que o Brasil venceu o Fortaleza no Bento Freitas, no sábado anterior. Algumas acusavam em vídeos os gaúchos de discriminação a nordestinos e incitavam o uso da peixeira. Como um grupo da organizada do Leão ainda permaneceu em Porto Alegre na semana seguinte prometendo pelas redes “pressionar já na saída deles” no aeroporto, o delegado Gabriel Leite, da Polícia Federal, torcedor xavante, acionou colegas no Salgado Filho e em Fortaleza.
Até a Polícia Federal foi acionada para acompanhar as ameaças.
Mas a saída em Porto Alegre foi calorosa. Perto de 20 xavantes da Onda e a Invasão Xavante, as organizadas rubro-negra da Capital, cantaram o hino “Brasil, Brasil, Brasil/As suas cores são nosso sangue, a nossa raça...”
Um deles, o empresário Márcio Vaz garante:
– Somos aqui mais de 2 mil, a terceira maior torcida de Porto Alegre.
O comandante
Quando os dois confrontos com o Fortaleza chegaram em outubro, o técnico Rogério Zimmermann, 50 anos, blindou ainda mais o grupo. Metódico, detalhista, adepto ao aspecto técnico e avesso ao estilo motivador, de tão concentrado esqueceu até a data de aniversários dos irmãos Ricardo, dia 8, e Roberto, dia 12.
– Tenho de pensar em tudo nesta hora – defendeu-se Zimmermann.
Ricardo assistiu à decisão do irmão em Fortaleza junto aos xavantes no bar do Zequinha e explicou:
– Eu liguei na segunda-feira (após o jogo contra o Fortaleza em Pelotas). Ele disse que estava muito focado e não se lembrou.
Comandante desde maio de 2012 do Brasil, Rogério é o responsável pelos acessos ao Gauchão, às séries C e B e pelos títulos da Série D e do Interior. Três anos e meio de convivência dá direito ao técnico de cobrar da cidade ambição maior.
Estádio novo, por exemplo.
Com frequência o técnico toca no assunto na mídia da Zona Sul e fala como embaixador da ideia. Com o “calendário fantástico” de Gauchão, Copa do Brasil e Série C, jogando na Arena, Beira-Rio, Pacaembu, Maracanã, Brinco de Ouro e Castelão, uma verdade se acimenta em Pelotas: o time mudou de turma, falta o estádio.
– O Jornal Nacional falou dos quatro que subiram para a Série B e deu um tempo maior mostrando a festa da torcida na volta a Pelotas. Foram minutos no Jornal Nacional. Olhem a dimensão disso! – comentou o técnico.
Quando o Brasil enfrentou o Tupi em Juiz de Fora, o altofalante anunciou eufórico gol do Vasco, que àquela hora jogava contra o Flamengo no Maracanã. A torcida do Tupi vibrou como se fosse gol do time local.
– Olhei aquilo e pensei “no Brasil não tem isso”. Quem torce e joga no Bento Freitas é só rubro-negro, essa cultura que é bom manter. E pode ser assim sem odiar o outro – disse Zimmermann.
Estádio é a promessa para o futuro
bento Freitas será reconstruído
Ídolos na cidade, Leandro Leite, Eduardo Martini, Cirilo, Fernando Cardoso e Nena aparecem na TV, jornais e rádios locais várias vezes, estão na rua, tiram fotos, dão autógrafos, ganham os corações de crianças e adolescentes e renovam gerações de torcedores. Não é mais só o orgulho de 1985, quando o Brasil foi terceiro na Série A.
Dono do Restaurante Cidadela, no centro de Pelotas, que atende ao público ao meia-dia e à noite serve de refeitório aos jogadores, o presidente do clube, Ricardo Fonseca, assinou no final de setembro patrocínio do Banrisul no valor de R$ 280 mil pelo restante da temporada. Como os salários estavam atrasados quase dois meses, o clube antecipou as cotas com o banco e saldou o que devia.
Em 10 de outubro, porém, dia do primeiro jogo contra o Fortaleza, no Bento Freitas, venceu o salário de setembro.
- Dependemos desesperadamente das bilheterias dos jogos finais da Série C - disse o vice-presidente Cláudio Montanelli.
Com folha de R$ 280 mil, ou cerca de R$ 3,3 milhões por ano, uma das mais baixas entre os clubes da Série C, o Brasil se sustenta com patrocínios e chamados apaga-incêndios da torcida. Agora, com o acesso à B, receberá R$ 4 milhões da televisão e outros R$ 500 mil por direitos no Gauchão. Na C não há verba de televisão. A ajuda de custo é só hospedagem e deslocamentos. Agora vai mudar.
– Se o Brasil não crescer agora, vai ser difícil. Queremos ter 10 mil sócios – disse Fonseca, empoleirado com os jogadores no carro de som que se arrastava em meio aos fios elétricos das avenidas Fernando Osório e Bento Gonçalves durante a recepção de 30 mil xavantes na cidade.
O gargalo é o estádio, que comporta apenas 5.170 torcedores mais 3 mil de arquibancada móvel que depende de vistorias.
Na noite de 15 de outubro, uma quinta-feira, enquanto a delegação dormia em Fortaleza sabendo que no sábado iria encarar um estádio com 60 mil para decidir o acesso à Série B, em Pelotas o Conselho Deliberativo aprovou o projeto do novo estádio Bento Freitas.
A direção resolveu investir na reconstrução desde os problemas numa arquibancada para acolher a torcida no jogo contra o Flamengo, pela Copa do Brasil, no começo do ano.
De início, um primeiro anel inferior deve acolher 13 mil torcedores, erguido em permuta com a construtora Porto 5, de forte atuação na Zona Sul. Depois, outros módulos elevariam a lotação para 21 mil, um negócio acima de R$ 20 milhões.
No alto do carro de som com a delegação em festa pelo acesso no Brasileirão, o vice de futebol e secretário de Transporte da cidade de 350 mil habitantes fez uma frase no momento em os jogadores se agachavam para evitar cabos e fios elétricos do centro da cidade:
– Pelotas tem de se preparar melhor para uma festa dessa!
Depois de 23 horas de viagem e carreata sobre o carro de som, jogadores terminam a noite cumprimentando torcedores no alambrado do estádio.
Há 30 dias do acesso em Fortaleza, o Brasil viveu um momento nervoso. Sem vencer há cinco rodadas, ainda assim bastava ao Brasil derrotar o Guarani-SP em casa para passar de fase com uma rodada de antecipação. Poderia descansar e aguardar as quartas de final da C.
No último minuto, porém, o Brasil sofreu o 2 a 1, e os xavantes foram às vaias. O vestiário, tão afeito à paparicação da torcida, sentiu.
– Eu fui dormir às 6h. Fiquei assistindo à gravação, fizemos tudo para ganhar – contou Zimmermann.
A classificação seria decidida contra o Tupi, em Juiz de Fora, na última rodada. Ao Brasil bastava vencer. E Diogo Oliveira marcou a um minuto e Nena fez o 2 a 0 ainda no primeiro tempo. Acontece que o Juventude passou a empilhar gols na Serra contra o Guaratinguetá e ameaçava roubar a vaga do Brasil. Fez 3 a 0 aos 35 minutos do segundo tempo.
A vitória de 2 a 0 dos xavantes acabou três minutos antes de Caxias. Se o Juventude fizesse 4 a 0, seria ele o classificado.
Na saída de campo, em Juiz de Fora, o supervisor Moisés Von Ahn veio com o rádio para acompanhar o resultado no Alfredo Jaconi.
– Não, não queremos ouvir – retrucou Rogério, levando os jogadores para cumprimentar torcedores do Brasil que estavam em Minas.
Moisés ouviu solitário o rádio. Alguns deles, Leandro, Wender, Cleverson e Cirilo, curiosos, queriam saber o resultado de Caxias. Foram de novo demovidos pelo técnico e se encaminharam para o vestiário.
Um minuto depois, desceu Moisés aos gritos. O Brasil havia passado. Como a torcida xavante permaneceu nas arquibancadas, os jogadores voltaram a campo para festejar com eles.

Fidelidade xavante
Festa em Porto Alegre e Pelotas para comemorar o acesso
A recepção foi enlouquecida em Pelotas. E só era a classificação ao mata-mata.
Na quarta-feira após o jogo de domingo em Juiz de Fora, dois ônibus com torcedores em excursão a Minas recém voltavam de viagem. Então os jogadores retribuírem a dedicação. Interromperam o treino e foram abraçar os viajantes.
Para a decisão contra o Fortaleza havia expectativa de lotar seis ônibus. Não houve ônibus. Três dias e meio em 4 mil quilômetros de viagem eram demais. Mas apareceram mais de 300 xavantes no público de 60 mil do Castelão.
No acesso à Série C, ano passado, contra o Brasiliense, havia cerca de 600 xavantes, a maioria do DF. Outros foram de avião do Estado, Santa Catarina, São Paulo e Rio. Mas 40 deles viajaram de ônibus 36 horas e 2,3 mil quilômetros de Pelotas a Taquatinga.
No domingo, após sete horas de voo de Fortaleza, três horas de ônibus até a entrada de Pelotas e outras quatro horas em festa no carro de som seguido por uma multidão, a delegação chegou às 23h ao Bento Freitas. O estádio estava lotado e a cidade intransitável.
Ao final da festa, Zimmermann e os jogadores, que haviam saído às 2h de Fortaleza foram ao alambrado do estádio. Concederam autógrafos, fizeram fotos e conversaram pacientemente com o torcedor. Passava das 23h. Mas estavam lá participando da diversão do torcedor.