Porto Alegre sabe planejar?
Prazos perdidos, obras que nunca ficam prontas, projetos com erros e mudanças de rumo geram críticas à prefeitura
Reportagem: Itamar Melo | Imagem: Tadeu Vilani | Edição: Ticiano Osório | Edição digital: Greyce Vargas | Arte: Gabriel Renner
Porto Alegre: uma nova avenida termina em um muro, porque não se previu o que fazer com uma fábrica que estava no caminho. Uma ciclovia recém-construída por um setor da prefeitura é destruída por outro, que faz uma calçada no lugar – e os dois órgãos sustentam que não houve falha nos planos. O serviço de parquímetros fica dois meses sem funcionar, já que a licitação que deveria ter sido feita não aconteceu.
Situações como essas, que levantam questões sobre a capacidade de organização e planejamento do município, têm ocorrido em diferentes esferas, desde as mais prosaicas, como a escolha de um guarda-corpo para uma ciclovia (as toras de eucalipto instaladas em janeiro de 2012 e logo retiradas), até as de grande ambição, caso de projetos como o BRT e o metrô. No episódio mais recente, Porto Alegre esteve sob risco de ficar sem o BikePoa, o serviço público de aluguel de bicicletas.
Prazos perdidos, obras que nunca ficam prontas, projetos com erros básicos e mudanças repentinas de rumo estão entre os problemas que geram críticas à condução dos projetos na cidade.
– Tem muito amadorismo na prefeitura. No caso das obras da Copa, que eu conheço, os projetos de mobilidade deveriam estar planejados antes, mas a prefeitura saiu a catar, a fazer tudo em um período curto. Eles trabalham em cima de verba. Arrumam dinheiro federal e saem atrás do que fazer com esse recurso. Planejam na hora de construir. É na corrida. Daí, sai bobagem. Não sai a obra – afirma o engenheiro Paulo de Tarso Dutra, que trabalhou em alguns dos projetos que apresentaram problemas.
“Tem muito amadorismo na prefeitura. No caso das obras da Copa, que eu conheço, os projetos de mobilidade deveriam estar planejados antes, mas a prefeitura saiu a catar, a fazer tudo em um período curto”
Para discutir se há falha no planejamento feito pelo município, Zero Hora selecionou um conjunto de projetos recentes e encaminhou questionamentos às secretarias e órgãos municipais responsáveis. Foram enviadas as mesmas cinco perguntas: o que se fez para solucionar o problema, por que o problema aconteceu, qual o prejuízo, quem foi o responsável pela falha e se houve alguma punição pelo erro. Na maioria dos casos, os gestores públicos preferiram ignorar as perguntas enviadas e remeteram uma resposta genérica. Em geral, não reconheceram erros e não apontaram responsabilidades. Aparentemente, nenhum servidor público sofreu penalização. ZH também pediu, várias vezes ao longo do mês, uma entrevista sobre o tema com o prefeito José Fortunati, mas não foi atendida.
Os projetos abordados nesta reportagem e as correspondentes respostas da prefeitura foram submetidos ainda a especialistas em planejamento e administração pública. O engenheiro Thiago Regal, presidente no Rio Grande do Sul do Project Management Institute (PMI), instituição especializada em gerenciamento de projetos, afirma que é difícil dar um parecer sem enfronhar-se nos detalhes, mas não tem dúvidas de que ocorreram erros:
– Os projetos claramente tiveram problemas graves, ou não teriam o desfecho que tiveram. Quando muitos projetos apresentam problemas, pode ser um indicativo de que tem alguma coisa que é consistentemente errada. Para mim, o grande problema é que não existe uma cultura de que, para fazer um projeto, tem de usar ferramentas de gestão de projetos. O poder público precisa entender que isso não é opcional. O papel do gerente de projeto também é fundamental.
“Quando muitos projetos apresentam problemas, pode ser um indicativo de que tem alguma coisa que é consistentemente errada”
Melvis Barrios Junior, presidente do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea/RS), identificou deficiências de planejamento, gestão e fiscalização.
– Com certeza, há falhas. Às vezes, um somatório delas. Temos muito político, pessoa sem conhecimento, fazendo gestão de áreas de infraestrutura, quando deveriam existir mais profissionais nessa função. Para minorar o riscos, é preciso fazer um planejamento eficiente – diz ele.
O professor Diogo Joel Demarco, do curso de Administração Pública e Social da UFRGS, analisou o material enviado por ZH e ofereceu um diagnóstico que considera válido, ao menos, para grande parte dos projetos elencados:
– Evidenciam-se problemas que afetam todas as dimensões básicas da administração pública: planejamento, orçamento, gestão e controle. E eu agregaria mais uma dimensão, que é a participação da sociedade organizada na formulação, implementação e controle das ações e atividades públicas.
“Evidenciam-se problemas que afetam todas as dimensões básicas da administração pública: planejamento, orçamento, gestão e controle”
Como antídoto, Demarco apresenta algumas recomendações. Sugere a “recuperação da capacidade estatal da prefeitura”, com o fortalecimento dos quadros técnicos, e propõe a criação de mecanismos de diálogo e coordenações entre os diversos órgãos responsáveis pelo planejamento e implementação dos projetos. Além disso, defende um “cuidado maior na divulgação” pelo poder público. Na avaliação do professor, os gestores, na ânsia de apresentar futuras realizações, geram “expectativas que estão muito distantes de serem cumpridas, pois são oriundas de ideias ou desejos que, quando muito, estão alicerçados apenas em projetos básicos, sem os devidos estudos e projetos executivos”.
ZH fez um inventário de 10 projetos municipais que enfrentaram percalços e questionou os órgãos responsáveis sobre as causas dos problemas.
2011- PORTAIS DA CIDADE
Durante anos, o projeto Portais da Cidade foi a grande aposta da administração municipal. Os prefeitos José Fogaça e José Fortunati prometiam uma revolução no transporte. A ideia, apresentada em 2007, consistia em construir três grandes terminais (um na Zona Norte, outro na Cidade Baixa e um terceiro na Azenha), onde pessoas que viessem dos bairros e de municípios vizinhos trocariam de ônibus e viajariam por corredores melhorados até o Centro. Cada um desses terminais funcionaria como um pequeno shopping center.
Para tocar a obra, a prefeitura conseguiu um financiamento de US$ 100 milhões da Corporação Andina de Fomento. Em 2011, o prefeito José Fortunati anunciou que o projeto, antes considerado essencial, seria arquivado. Os técnicos da prefeitura descobriram que os terminais não poderiam ter o perfil de shopping, porque os passageiros não gastariam muito tempo neles. Com isso, ficava inviabilizado o plano de que a iniciativa privada bancasse boa parte das obras.
2011 – REURBANIZAÇÃO DA ORLA
Em dezembro de 2011, o prefeito José Fortunati anunciou a revitalização de 6 quilômetros da orla do Guaíba. O primeiro trecho, de 1,5 quilômetro, entre o Gasômetro e a Rótula das Cuias, ganharia marina, ciclovia, calçadão, banheiros, canchas esportivas e quiosques. O arquiteto Jaime Lerner foi contratado, por R$ 2,1 milhões, para projetar. O prazo para a obra ser iniciada foi fixado em maio de 2012. No fim do ano, ficaria pronta.
Em março, a Promotoria de Defesa do Patrimônio Público encaminhou uma representação à prefeitura, fazendo uma série de perguntas. Uma delas dizia respeito à razão para contratar Lerner sem concurso. O Instituto dos Arquitetos do Brasil também pediu esclarecimentos. Surgiram ainda questionamentos do TCE. O projeto teve de ser revisto.
A licitação foi adiada mês após mês. Mais de um ano depois, em outubro de 2013, o secretário de Desenvolvimento de Assuntos Especiais, Edemar Tutikian, afirmou que o projeto estava atrasado por ser “mais profundo do que se imaginava inicialmente”.
O edital de licitação acabou por sair só em setembro do ano passado, mas foi cancelado no mês seguinte. Tinha erros. Faltavam pranchas (apresentações gráficas do projeto) necessárias para os orçamentos. Relançado, não teve empresas interessadas. Em março, na terceira tentativa, ainda não havia aparecido ninguém para fazer a obra. Na quarta tentativa, em julho, finalmente apareceram candidatos – depois de a prefeitura aumentar o orçamento. A previsão é de conclusão em 2017.
2012 – AVENIDA GRÉCIA
A Avenida Grécia, que corre em paralelo à Assis Brasil, representou durante anos a esperança de desafogo do trânsito na zona norte de Porto Alegre. No começo da década, a duplicação foi finalmente realizada, com dinheiro do Grupo Zaffari, como contrapartida à construção do Bourbon Wallig.
Em fevereiro de 2012, quando a avenida estava praticamente pronta, descobriu-se que ela era um beco sem saída. Em lugar de desembocar na Avenida do Forte, como estava previsto, terminava diante de um muro de concreto – o da fábrica de armamentos Taurus. Só com o aval do Exército, que a prefeitura não tinha, seria possível fazer o trecho final da via.
Meio ano depois, soube-se que os militares deram sinal verde para a realização da obra – mas um túnel entre as duas metades da fábrica teria de ser construído. Passados três anos do término da duplicação, a Avenida Grécia continua desembocando no nada.
2013 – TRINCHEIRA DA ANITA
“Projeto básico feito às pressas para garantir financiamento, atrasos no trabalho e nas desapropriações, aditivo possivelmente acima do permitido e uma construtora a passos de tartaruga transformaram uma estrutura que devia estar pronta antes da Copa do Mundo em um buraco a céu aberto que apenas causa prejuízo aos porto-alegrenses.” Assim começava reportagem publicada por ZH em abril deste ano, tendo como tema a construção da trincheira da Rua Anita Garibaldi, na Terceira Perimetral. A obra começou em janeiro de 2013, com previsão de estar terminada em um ano – mas acabou paralisada. O grande obstáculo foi a descoberta, durante os trabalhos, de uma imensa rocha no meio do caminho.
Uma inspeção do Tribunal de Contas do Estado indicou que houve falha no projeto básico – a rocha não foi detectada na fase de sondagens, o que implicou um custo adicional de R$ 4 milhões. Segundo Melvis Barrios Junior, presidente do Conselho Regional de Engenharia (Crea), não havia como não detectar a pedra – mas o trabalho não foi feito corretamente. A obra foi retomada em maio e só deve ficar pronta no ano que vem.
2013 – BRT
Em 2013, a prefeitura exibiu no Largo Glênio Peres um ônibus articulado com 24 metros de comprimento e capacidade para 166 passageiros. Era uma amostra do modelo que circularia a partir de março de 2014, antes da Copa do Mundo, com a entrada em operação do sistema BRT.
Nesse sistema, ônibus de grande capacidade andariam por corredores exclusivos e seriam dotados de mecanismos para garantir a velocidade nos trajetos. Foram anunciadas estações de embarque fechadas e com ar-condicionado, além de uma série de gigantescos terminais de integração.
Ainda ao longo de 2013, os novos corredores exclusivos de concreto, que haviam substituído os de asfalto para aumentar a durabilidade, tiveram de ser desmanchados e refeitos em várias avenidas, pela falta de qualidade. O prefeito José Fortunati afirmou que as empreiteiras responsáveis haviam sido multadas, mas o coordenador técnico das obras de mobilidade da Secretaria Municipal de Gestão, Rogério Baú, revelou mais tarde que não houvera necessidade de punição. Segundo o Tribunal de Contas do Estado, o atraso no corredor da Protásio Alves teve um custo mensal de R$ 98 mil.
2013 – METRÔ
O metrô de Porto Alegre nunca saiu do papel, mas já tem uma longa história de idas e vindas. Em uma ocasião, a prefeitura chegou a abandonar o traçado original – entre a Azenha e a Zona Norte, passando pelo Centro – para propor um trajeto que sairia do Centro, passaria pelo Beira-Rio e pelo Estádio Olímpico e depois seguiria até o campus da UFRGS, quase na divisa com Viamão. Era uma tentativa de encaixar o empreendimento nas obras da Copa. Não emplacou.
Em 2011, foi apresentado um novo projeto, com 14,8 quilômetros de extensão. Os trilhos iriam da Fiergs, na Zona Norte, ao Centro. O orçamento foi estimado em R$ 2,4 bilhões. Lançada a Proposta de Manifestação de Interesse (PMI), o único consórcio qualificado calculou os custos em R$ 9,5 bilhões. A prefeitura anunciou que não havia mais cronograma para o metrô.
Em 2013, o prefeito José Fortunati apresentou mais um projeto, que eliminava 30% do trajeto anterior, mas dobrava os custos, chegando a R$ 4,8 bilhões. O metrô teria 10,3 quilômetros, entre o Centro e o Terminal Triângulo, e não mais os 14,8 quilômetros originais. A perna de 4,5 quilômetros entre o Triângulo e a Fiergs foi cortada. Segundo Fortunati, uma prospecção revelara que a área junto à Fiergs, onde ficaria o complexo de manutenção dos trens, era alagadiça, o que inviabilizaria seu uso. Para utilizar a área, seria necessário fazer um investimento adicional de R$ 3 bilhões. Não foi explicado por que não se sabia disso antes.
Por causa desse percalço no planejamento, o projeto passou a incluir um túnel de 1,4 quilômetro – mais de 10% da extensão total – que serviria apenas para levar os trens a uma nova área de manutenção.
O próprio traçado escolhido para o metrô,depois de várias idas, vindas e encolhimentos, é questionado: corre pela Farrapos, em paralelo ao outro único sistema de transporte de grande capacidade da cidade, o Trensurb.
– Isso é falta de convicção e de projeto de longo prazo. O metrô tem hoje três ou quatro alternativas de rota. E a rota que está posta talvez não seja a mais adequada para a cidade, porque ela sai do Centro e vai até a Cairu pela Farrapos, em zona que não tem densidade populacional, não tem morador. Em qualquer cidade do mundo, o metrô vai cruzar as áreas mais densamente povoadas. Em um investimento desse porte, hoje de R$ 10 bilhões, nós não podemos errar. Esse projeto sempre foi tratado a portas fechadas, quase em segredo – diz Melvis Barrios Junior, presidente do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea/RS).
2013 – CONDUTO FORÇADO ÁLVARO CHAVES
O Conduto Forçado Álvaro Chaves levou três anos para ser construído, provocou muitos transtornos à circulação na cidade e foi definido pelo prefeito José Fortunati como a maior obra de drenagem da história de Porto Alegre.
Não demorou para causar problemas. Uma chuvarada ocorrida em fevereiro de 2013 fez o asfalto sobre o conduto desmoronar em dois pontos da Rua Coronel Bordini. A via ficou interditada durante semanas. A obra tinha apenas cinco anos de idade. No fim daquele ano, outras duas crateras abriram-se na Rua Doutor Timóteo.
Parecer técnico feito pelo Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea-RS) apontou que o conduto cedeu devido a problemas que passam por concepção, elaboração do projeto, execução, fiscalização e gestão. O engenheiro André Luiz Lopes da Silveira, diretor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS, foi o coordenador da comissão que elaborou o parecer. Segundo ele, faltou um gestor do projeto, alguém que, ao supervisionar o todo, perceberia os erros.
2015 – PARQUÍMETROS
No começo do ano, o contrato com as empresas responsáveis pela manutenção dos 217 parquímetros da cidade venceu. Aparentemente, a prefeitura foi apanhada de surpresa. Não havia planejado uma nova licitação para o serviço. Como as empresas deixaram de recolher as moedas acumuladas nos equipamentos, eles ficaram abarrotados e entraram em pane. Ficaram cerca de dois meses sem funcionar, gerando receio entre os usuários, que temiam ser multados por estacionamento irregular.
O serviço só foi regularizado depois da realização de uma licitação. Quando voltou a funcionar, a tarifa para estacionar estava 33% mais cara.
2015 – BIKEPOA
Em agosto de 2014, quando faltava mais de um ano para o término do contrato de concessão do serviço de bicicletas de aluguel da Capital, o BikePoa, a prefeitura já anunciava estar trabalhando em uma nova licitação para escolher a empresa responsável pela operação do sistema. O edital foi previsto para julho de 2015, para dar tempo de uma transição suave, mas acabou adiado pela prefeitura. No fim, a licitação só saiu no dia 31 de agosto.
Como o contrato venceria em 22 de setembro – data conhecida havia três anos –, o atraso na licitação significaria colocar em risco a continuidade do serviço, que tem 153 mil usuários cadastrados. Se a atual concessionária não saísse vencedora, o serviço ficaria interrompido, por tempo indeterminado, até que a empresa substituta estivesse em condições operar.
O resultado da licitação saiu no dia 21. Nenhuma empresa apresentou proposta. O fracasso foi atribuído à decisão da prefeitura de exigir, no edital, o repasse a seus cofres de 10% do que fosse arrecadado com os aluguéis. A Serttel, operadora do serviço, informou que a nova regra não garantia “a viabilidade econômica do projeto sem o apoio do patrocinador”. O patrocinador, o Itaú, afirmou que já contribuía com 100% do custo e da manutenção do sistema e que a taxa que a prefeitura queria cobrar não era “razoável”.
Para não deixar o cidadão sem as pedaladas, a EPTC teve de prorrogar o contrato vencido por mais seis meses, enquanto prepara novo edital.
2015 – CALÇADA X CICLOVIA
Em 2013, a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) construiu, junto ao Parque Marinha do Brasil, um trecho da ciclovia da Avenida Ipiranga. Em abril de 2015, apenas dois anos depois, porto-alegrenses viram a ciclovia ser desmanchada para a realização de outra obra municipal no mesmo lugar: uma calçada, que foi feita pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente.
Na época, o então titular da Smam, Cláudio Dilda, disse que a EPTC implementou a ciclovia antes da licitação do projeto do órgão ambiental, responsável pelo passeio. Vanderlei Cappellari, diretor-presidente da EPTC, afirmou que, quando do início da construção da ciclovia, não havia previsão de calçada no trecho.
Entrevista com Alvaro Guedes, professor de Administração Pública na Universidade Estadual Paulista (Unesp)
Doutor em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e autor de uma série de livros sobre o tema, o professor Alvaro Guedes avaliou os problemas ocorridos nos projetos tratados nesta reportagem e as respectivas respostas oferecidas pela prefeitura de Porto Alegre.
É possível chegar a uma conclusão a partir dos problemas elencados nesses projetos?
Mesmo eu, que sou de fora, consigo visualizar bem a questão. Se você desenvolve uma ação pública sem o chamado controle social, essa ação fica vulnerável a esses erros. Quando o processo de decisão sobre como conduzir a gestão pública tem um mínimo de legitimidade, questões como essas são facilmente evitadas. Fazer uma discussão ampliada, em que atores específicos são chamados a opinar, permite evitar problemas simples, como aquele da avenida que termina no muro da Taurus (Avenida Grécia).
Como se faz esse controle social?
Depois de olhar o material, estou seguro no que vou afirmar: você não consegue conduzir a cidade sem um envolvimento maior das forças vivas do local. Todas essas ações listadas são para promover o desenvolvimento urbano. Se você tivesse uma espécie de conselho municipal de desenvolvimento urbano, onde estivesse o Exército, o Crea, a associação dos arquitetos e representantes da população, se esse atores fossem ouvidos, seguramente nenhum desses erros apontados teria sido cometido, porque são erros de viabilidade de projeto.
O que é a legitimidade de que o senhor fala?
É a legitimação das intenções. Quando uma proposta é negociada amplamente, você consegue fazê-la fluir com rapidez. Dou um exemplo. O Banco Mundial, quando está com intenção de fazer um determinado investimento, gasta muito mais tempo na formatação do projeto do que na execução. Porque você antecipa os problemas.
Em alguns casos, houve serviços interrompidos porque a prefeitura não fez a licitação a tempo. Esse não é um problema de solução simples?
É questão de se planejar. Mas vamos ver a coisa mais de fundo. É possível fazer um edital que evite dificuldades. O que é um edital que evite dificuldades? É um edital que esgote bem a intenção do que se pretende fazer. Você sempre tem problemas quando o edital é dúbio, é lacunar. Quando o edital é bem formulado, dificilmente dá problema.
No caso do transporte público de Porto Alegre, primeiro a grande aposta eram os Portais da Cidade. Depois, virou o BRT. Em seguida, tirou-se o BRT da Assis Brasil para dar lugar ao metrô. Agora não se sabe se vai sair o metrô e não há projeto para a Assis Brasil. O que essas idas e vindas revelam?
O que você acabou de descrever mostra que a contingência, o momento, redefine todo o processo. Se você não tem um mínimo de consenso para saber o que vai ser necessário, vira essa função errática. Qualquer uma dessas propostas, em princípio, seria viável. Mas como você tem uma indefinição, no sentido de qual seria melhor, fica pulando de um galho para o outro, conforme a contingência: vai ter a Copa e vão liberar dinheiro? Ah, então para tudo e vamos fazer outro projeto. E acaba não fazendo bem feito. Pior ainda: não faz nenhuma obra.
Falta convicção sobre o que tem de ser feito?
Sim. Porque você está tomando decisão de gabinete, isolada. Quando você toma decisão isolada de gabinete, você muda de ideia com tremenda rapidez. Uma coisa é discutir como faremos e como deixaremos de fazer. Outra coisa é, a cada ano, pensar numa alternativa, todas elas mirabolantes. Por que isso acontece? Porque existe uma decisão isolada. E essa decisão é facilmente influenciável por interesses escusos, inclusive.
Outra questão recorrente é o anúncio de prazos que depois se revelam fantasiosos. O que explica esses erros?
Não se explica o inexplicável. Alguém está te vendendo gato por lebre. Não tem erro, é alguém que está te fraudando mesmo, está tentando te dizer uma coisa que não existe. E aí eu volto àquela história: o que temos no serviço público? Escassez de recurso. Então, não dá para ficar errando. As coisas têm de ser bem elaboradas. A fórmula é simples. Empresa japonesa faz reunião para ratificar uma coisa que já foi amplamente discutida. Documentos circularam na mão de um monte de gente. Quando você entra (na reunião), todo mundo está bem informado, há uma série de opiniões que são quase consensuais. Então é só bater martelo. Agora, quando você tem uma reunião para bater o martelo sem discussão prévia, a chance de erro é maior. O que aconteceu? Você não antecipou certas perspectivas. Como é que você minimiza risco? Ouvindo especialistas, ouvindo opiniões contrárias. Aí, você soma para formar o juízo.
Chama atenção que, quando questionamos os órgão municipais, eles não reconheceram erros e não apontaram nenhuma punição pela falhas. Isso é ruim?
É um sintoma péssimo. Uma discussão que está muito forte na literatura de administração pública é a chamada accountability, que é a responsabilização. Desde os anos 1980, isso tem sido discutido. Quem foi que errou? Ele tem de ser responsabilizado pelo erro, sim. O Estado não é um ser etéreo. O Estado é composto por agentes públicos. Se ele, em nome do Estado e como agente público, age de forma indevida e causa o erro e o prejuízo, tem de ser responsabilizado. Voltando à tua reportagem: de quem é a responsabilidade pela falha? Aparece o tempo todo: não foi respondido, não foi respondido. Isso é um absurdo! Como que não foi respondido? Isso também é fácil de resolver. Quando você tem um projeto em andamento, você designa um gerente desse projeto. Ele vai responder pela execução do projeto.