Especial

Edição: Leonel Chaves e Sérgio Villar | Edição Online: Roberto Azambuja | Ilustrações: Gilmar Fraga | Edição de imagens: Barbara Müller | Infografia: Michel Fontes

Era para ser apenas o placar, a informação numérica de um determinado jogo. Mas os 7 a 1 ganharam vida própria, “osseteaum”. Parece latim, difícil precisar a que classe gramatical pertence. Osseteaum é substantivo, adjetivo, advérbio, interjeição, sabe-se lá. Tudo ao mesmo tempo. É um marco, um estado de espírito, uma decepção. Mais do que tudo, uma dura constatação de nossas desilusões. Não somos mais o que já fomos. Osseteaum nasceu no futebol, só que se alastrou por nossas vidas. Virou sinônimo de incompetência, arrogância e ignorância. Marcou nossas paletas feito ferro em brasa.

Não deixa de ser curioso que osseteaum não seja uma consequência verdadeira de nada. Por pior que seja um time de futebol, ele não perde de 7 x 1 em uma semifinal de Copa do Mundo. Osseteaum é um acidente, o meteoro que tem um universo inteiro para escolher e desaba sobre a nossa cabeça. Nossa derrota para a Alemanha era quase inevitável, nunca com esse tamanho. Mas ainda bem que ela tenha sido dessa dimensão. Porque osseteaum foi um “pedala” na nossa orelha. Acordamos. Percebemos que vivemos dos lampejos. Temos solistas, não orquestra. Um ano se passou e não possuímos um sistema eficiente de peneira de jogadores. Não temos um sistema para desenvolver talentos. E o mais grave, não temos técnicos capazes de comandar qualquer mudança.

Um ano se passou e não aconteceu rigorosamente nada do ponto de vista prático. Seguimos iguais. Alguns solistas aqui e acolá, nenhuma orquestra, nenhum maestro. O diretor da orquestra é outro que não existe. A CBF não aprendeu nada de um ano para cá. Tudo igual. Está chamando Lazaroni e Parreira para discutir Seleção Brasileira. O significado disso é autoexplicativo.

O fracasso da Copa América foi o bolo de aniversário d’osseteaum. O primeiro aninho se foi e eis a prova de que seguimos na mesma. Ao menos serviu para a conscientização geral. Está claro que segue ruim. Mas tem jeito, ainda que vá demorar para melhorar. Em primeiro lugar porque a Seleção Brasileira é a parada final do bonde. O futebol começa nos clubes, passa pelos campeonatos, só depois chega à Seleção. Os clubes precisariam dar um bico na CBF, criarem uma Liga, colocarem profissionais gerindo o negócio. Teriam que revisar o calendário, enxugarem (ou terminarem) os estaduais, promoverem boas séries B, C e D. Todo clube precisaria ter divisão de base para disputar o profissional (na Alemanha é regra), a Liga não programaria jogos dos campeonatos em data Fifa. Com um futebol forte, talentos encontram espaço para florescerem. Precisaríamos de ajuda externa. Como no basquete e no handebol, nossos treinadores não dão conta do recado. Seria necessário importar alguns gringos.

Nada disso aconteceu um ano após osseteaum. Mas só o desconforto geral já é uma boa noticia. Osseteaum serviu para alguma coisa.

E como o mundo viu o 7x1? Clique aqui para acessar o especial de ZH e confira, em vídeo, o que os estrangeiros disseram sobre o vexame brasileiro.

Acesse o especial "Como o Mundo viu o 7x1"

Volte pouco mais de um ano no tempo. Então olhe para trás, pense e responda: qual o maior desastre, a acachapante vergonha, o mais esmagador, humilhante, deprimente vexame da história do futebol? Antes da Copa do Mundo disputada no Brasil, diversos jogos de placares elásticos, derrotas constrangedoras e resultados surpreendentes formariam uma lista de pelejas que afrontaram torcedores.

Isso mudou em 8 de julho de 2014, quando Thomas Müller, Miroslav Klose, duas vezes Toni Kroos, Sami Khedira e Andre Schürrle, também com um par de tentos, escreveram o roteiro da tragédia. Maior campeão Mundial, dono de cinco títulos, jogando em casa e com assumida pretensão de erguer o troféu pela sexta vez, o Brasil foi surrado, humilhado, espancado, pisado, maltratado, esculachado. Alemanha 7 a 1!

“Apagão”, “acidente”... Clichês, lugares-comuns, chavões cretinamente desenterrados por quem, apesar de tudo, ainda tentava disfarçar. Como se fosse possível camuflar a bola sete vezes balançando as redes do Mineirão lotado por brasileiros iludidos, que choravam. Sim, iludidos pelo discurso pseudopatriótico de sempre, que convoca todos a torcerem pela Seleção, há tempos mais é da CBF do que brasileira.

Aquelas pessoas acreditavam no comandado do obsoleto Luiz Felipe Scolari, tendo de um lado o eterno subordinado Murtosa e do outro o não menos antiquado Carlos Alberto Parreira. Velhas ideias sobre futebol, arcaicos conceitos, estratégias em desuso, apostas em métodos que deram resultado 12 anos antes. Para eles e quem os colocou lá, era como se nada tivesse mudado desde 2002.

A estrutura do futebol brasileiro está putrefata há tempos. Mas no 7 a 1, cartolas aparecem como artífices do desastre por terem ressuscitado uma comissão técnica de concepções embalsamadas. Seus integrantes tiveram bom elenco, apoio popular e condições de treinamento. Mas na prática mostraram incapacidade. Tivessem autocrítica, diriam “não” quando foram chamados.

Vitória sobre a Croácia com ajuda do apito, dramático duelo com o Chile, sufoco diante da Colômbia nos instantes finais... Evidentes sinais de que os brasileiros não formavam uma equipe na acepção da palavra. Sem conjunto, competitividade, criatividade, repertório, capacidade defensiva. O sonho do hexa era mesmo um sonho.

A ilusão coletiva provocada pelo oba-oba multiplicou as proporções do desastre. Os sete golpes germânicos eram como facadas inesperadas. E, pasmem, houve piedade por parte do adversário. O atraso técnico e tático do futebol jogado no país e a estrutura falida que o cerca levaram ao maior vexame da história.

Quantos choques serão necessários? Há solução? Um ano depois não se vê legado. Nem a surra alemã ensinou óbvias lições. O futebol brasileiro tem jeito. Mas se aparece uma luz no fim do túnel, insiste em caminhar na direção contrária. Se vê Guardiola, corre para os braços de Dunga.

Foi uma derrota humilhante, exagerada, mas não foi experimentada como à da final de 1950 para o Uruguai, no Maracanã. Em 1950, em um momento de consolidação do estado-nação, a derrota foi vivida como um fracasso de um projeto de Brasil. Entre as décadas de 1950 e 1970, quando a Seleção perdia, era o país quem perdia. Quando a Seleção ganhava, também era o Brasil como nação quem ganhava. Hoje, porém, a Seleção Brasileira é percebida apenas como um time de futebol. E, talvez, isso faça doer menos.

Após os 7 a 1, muito se falou sobre mudanças. Na prática, se mudou o técnico. De Felipão por Dunga, que por sinal já havia treinado a Seleção. Os amistosos que deram a Dunga 10 vitórias em sequência teriam mascarado as fragilidades desse novo time. Torcedores e imprensa costumam se comportar como engenheiros de obras feitas, como profetas do acontecido. Não estaríamos discutindo este tema, com este tom, caso o Brasil estivesse na final da Copa da América. Apesar de termos entrado nessa competição mais humildes, não estávamos tão cientes de que ainda somos muito dependentes de um jogador: Neymar. A Copa América e a eliminação para o Paraguai decretaram isso. O que antes suspeitávamos se transformou em uma certeza.

Já não somos mais aquela potência no futebol. Temos um jogador excepcional, Neymar, que não tem parceria. Os demais jogadores que deveriam aparecer não estão despontando. Dependemos de um jogador que tem se mostrado um pouco imaturo. Antes dos 7 a 1 tínhamos a soberba de acharmos que éramos os melhores do mundo. Hoje, sabemos que não temos sequer “o” cara. “O” cara é o Messi, que por sinal é o protagonista do Barcelona, clube no qual o nosso fora de série é ainda um coadjuvante.

Há um gesto de humildade nesse processo, e isso é bom. O problema é que agora até Neymar parece fragilizado. Se perde, dizem que ele não é isso tudo que se diz, que ele seria um produto da mídia. A mídia não o produziu. Ele é excepcional, por isso é capaz de pautar a mídia. Mas está sozinho na Seleção.

O fato de o brasileiro não vivenciar mais o desempenho da Seleção como um projeto nacional é positivo em um país que vem consolidando seu regime democrático. Mas isto não se deveu somente ao amadurecimento político da população. Fomos perdendo a identidade com a Seleção devido à globalização, ao fato de a equipe ser formada por jogadores que atuam fora do Brasil.

O país está melhor, a Copa foi bem organizada, as piadas sobre o “Imagina na Copa” foram superadas. Em termos futebolísticos, temos que nos reconstruir como time. É um momento de entressafra. Vai que Philippe Coutinho ou algum outro jogador surja e desabroche em 2018? Não sei se não poderemos vencer.

Nesse um ano, a única coisa boa que a CBF fez foi dar maior abertura aos clubes. A outra foi a Lei de Responsabilidade Fiscal (que ainda não saiu do papel). Isso é muito bom, ainda que os clubes estejam se mostrando contrários. Mas o trabalho de base não foi feito. O que não significa que o Brasil não vá ganhar mais nada.

Parece que a frase do Felipão tinha algo de verdade: teria ocorrido um “apagão”. O 7 a 1 para a Alemanha foi algo muito estranho. Nunca tinha visto algo parecido entre duas equipes de peso. Estava 5 a 0 e os alemães pareciam constrangidos. Os gols do segundo tempo talvez tenham saído porque não avisaram ao André Schürrle que era para parar. Ele entrou no intervalo, e fez mais dois. Não teria faltado alguém para acalmar o jogo depois dos 3 a 0?

Mas isso não seria motivo para não levarmos a sério aquela derrota e fazermos uma reflexão sobre a estrutura do nosso futebol. Não vejo mudanças. Um ano depois, a luz que vejo no fim do túnel se resume ao brilho de um único jogador.

Um apfelstrudel com sete velinhas para comemorar o dia em que — passado mais de meio século — o futebol brasileiro voltou a entrar em campo em total sintonia com o país, refletindo dentro das quatro linhas o que rolava fora delas. Sim, já havia acontecido antes: foi em 29 de julho de 1958, lá na Suécia, quando o Brasil meteu cinco nos donos da casa e levantou sua primeira Copa do Mundo. Quem ganhou em Estocolmo foi o país do Cinema Novo, da Bossa Nova, da Novacap, do presidente-sorriso — no tempo em que Arena ainda era nome de teatro onde ninguém usava black tie. E o tal esquadrão de ouro era mesmo bom de samba e bom no couro.

Passados 56 anos desde que aquele escrete sambou com a bola no pé, mostrando ao estrangeiro o futebol como é que é, a Copa girou, girou, virou negócio de vulto e voltou ao Brasil (64 anos após o vexame do Maracanazzo). Se com propina ou sem propina, não sabemos. O que sabemos é que na gloriosa tarde de 8 de julho de 2014 outra vez a Seleção pisou na grama (e na bola) para comprovar como e porque o futebol é mesmo a preferência nacional.

O juiz trilou o apito e foi o que se viu: o time que choramingava no hino de fato era de chorar. Enquanto o YouTube durar, estará lá: a moça com um cocar na cabeça, atônita com a mão na boca; a mulher com a cara pintada (oh, a cara pintada!) com cara de velório; o menino tão igual e tão diferente ao menino de Sarriá em 1982 debulhando-se em lágrimas.

Quatro gols em seis minutos! 5 x 0 em menos de 28... Era o inferno de Dante, o Golias germânico amassando David. Felipão com abrigo de fundilhos largos, qual caudilho catatônico de pijamas que foi amarrar seu jumento, mas o obelisco era esfinge e o devorou. A Alemanha pintada de rubro-negro, tingida de jenipapo e urucum como se pintavam os tupinambás deglutindo o banquete antropofágico. Nem ao afundarem os navios mercantes brasileiros em 1942 os alemães foram tão cruéis, apesar de dispararem mais de um chute de misericórdia.

Mas o que cabe ressaltar é que, como Gilmar, Djalma, Zito, Vavá, Pelé e Garrincha, o time da hecatombe de 2014 também jogou em perfeita sintonia com a nação. Enfim, e de novo, ali estava mais uma vez a pátria de chuteiras, pois quem entrou em campo naquele dia foi o país da bancada evangélica e da bancada ruralista, dos pastores e dos bovinos; da música sertaneja sem raiz, da trilha sonora das balas achadas e perdidas da PM assassina; o país ágrafo que só consegue abrir livro se for de colorir, o país da maioridade penada e da minoridade perdida, sem esquerda, sem direita, sem meio e sem centro, que atropela bicicleta e se engarrafa em carro popular, que prefere filme dublado, que paga a maior carga tributária do mundo, que dá auxilio-moradia para gente de toga, que é sujo como petróleo e que não há lava-jato que limpe. E, por fim mas não por último, o país da CBF — a CBF de Teixeira, Marin e Del Nero... Trio imbatível fazendo tabelinha no ataque e no gatilho.

Por isso, amigo torcedor, amigo secador, saudemos aquela Seleção memorável. Supõem-se que os nomes do 11 nacional serão esquecidos (se é que já não foram... Maicon? Luiz Gustavo? Marcelo? Fernandinho? Alguém levou o Oscar?). Mas se trata de uma das tantas injustiças do país sem memória e do povo que não conhece sua história condenado a repeti-la.

Porque, retrato mais fiel do Brasil do que a equipe que foi trucidada no Mineirão, só mesmo aqueles pendurados na presidência do Senado e na presidência da Câmara. Sem falar, é lógico, na gente que circula, sonâmbula, pelo Palácio do Planalto, esperando a alvorada que falha mas não tarda. Prost!

Não tive a grandeza de Dona Lúcia. Não enviei carta para o Felipão após a derrota acachapante. Escrevi matéria, e, confesso, “tuitei e feicebuquei” freneticamente como quem sorve um balde de cerveja para empurrar o excesso que caiu no goto.

E foi difícil, porque não se digere simplesmente assim uma derrota por 7 a 1. Sete... O número da conta de mentiroso, das notas musicais, dos pecados capitais, da bola de sinuca, das maravilhas do mundo, daquele mês de julho, das letras de Barbosa, de Ghiggia ou do novo vilão Scolari.

Estava sentada com o que seria o penúltimo copo da coleção bem bolada da cervejaria. A cada jogo, um diferente, com a estampa do nome das seleções envolvidas. Quase derrubei-o algumas vezes durante os 30 minutos iniciais, quando a Alemanha fez cinco gols trocando passes como numa brincadeira de criança no pátio da escola na hora do recreio.

Não deu tempo de chorar, sofrer, arrancar o esmalte. No máximo, um soco na bancada da tribuna de imprensa e um discreto beliscão no antebraço porque eu nunca sei se essas coisas ruins que acontecem na vida da gente são reais ou pesadelo.

Müller, Klose, Kroos, Khedira e Schürrle eram reais e publicaram seus nomes no placar e na histórica súmula daquela semifinal. Oscar também, mas somente para complicar a diagramação da ficha do jogo, já inchada de gols como eu nunca tinha visto na vida de leitora ou jornalista esportiva.

No primeiro tempo, Julio César tomou cinco. A diferença entre o primeiro e o quinto podia ser medida na reação da imprensa. O que era lamento virou raiva dissipada em deboche. No intervalo, bar do Mineirão lotado, e eu tentando apurar qual teria sido até então o maior vexame do Brasil numa Copa do Mundo.

Porque vida de jornalista é assim. Prazer e desgosto dão um trabalho tremendo. Ainda mais se o resultado for histórico e retumbante como o daquele jogo com seu destino já tão cedo rascunhado no placar e no meu bloco parceiro de guerra.

A bola voltou a rolar para Schürrle consolidar o vexame histórico e, no apito final do mexicano Marco Rodríguez, estava oficialmente aberta a temporada da infinita resenha que até hoje, um ano depois, ainda abastece a conta bancária dos botecos e as páginas dos jornais, em infindáveis clichês sem prazo de validade.

Culpou-se até a psicóloga Regina Brandão, tadinha. Os 200 milhões de analistas brasileiros, não necessariamente diplomados, viram uma Seleção chorar, nas oitavas, como manteiga derretida, e ouviram, naquela semifinal, David Luiz e Julio César cantarem o Hino Nacional com energia de barítono e a camisa do ausente Neymar nas mãos.

Culpou-se Zuñiga, o colombiano grosso que quebrou uma vértebra de Neymar e o sonho da nação. Culpou-se Felipão, que num rompante de loucura escalou o frágil Bernard para a vaga. Culpou-se Bernard, insosso, débil, lusco-fusco. E o elétrico Dante, substituto de Thiago Silva. Um inferno, enfim.

Uma derrota para a Holanda, 10 amistosos e uma Copa América depois, aqui estou, dissecando o efeito colateral da pátria que trocou as chuteiras por chinelos e que de vez em quando anda descalça por aí. Não cabe numa página de jornal, muito menos numa carta como a enviada por Dona Lúcia a Felipão após a derrota acachapante. Com todo o respeito.

Imagine a cena: um jornal precisa trocar sua rede de informática, obsoleta e incapaz de acompanhar o que está se produzindo no mundo. Convoca para a missão os mesmos homens, agora senhores, que instalaram a rede de telex há algumas décadas.

Analogias nem sempre são fotografias felizes de uma cena, mas foi o que me ocorreu vendo Candinho, Ernesto Paulo, Carlos Alberto Silva, Sebastião Lazaroni, Zagallo e Parreira na sede da CBF para discutir mudanças para o futebol brasileiro... ”Agora vai”, acho que foi o que ocorreu ironicamente para muita gente. Porque tal ideia realmente só pode ser deboche às vésperas de se completar um ano da tragédia dos 7 a 1.

Aliás, nada é mais espelho do deboche do que os próprios 7 a 1. Dos anos de deboche dos cartolas brasileiros com toda gente. Do descaso que sentem pelos que amam futebol. Pelas leis. Por um país. Depois instituem um hino obrigatório antes dos jogos e fica tudo bem, os patriotas de araque que vão destruindo o símbolo maior de identidade e da alma de um povo.

Foram anos construindo um 7 a 1. Nas maracutaias que fizeram a fortuna de alguns, nos desmandos em nossos gramados, na Seleção usada como trampolim para o enriquecimento. Enquanto isso, o futebol brasileiro murchava, se esvaía.

É uma ferida muito mais profunda do que qualquer derrota esportiva. O massacre alemão feriu de morte nossa alma, nossas vidas. Porque embora essa turma que debocha de todo mundo desconheça, futebol por aqui, com o perdão do lugar comum, é parte e afirmação de nossa identidade, terreno de elaboração dos nossos símbolos, manifestação maior de nossa cultura. Por sorte, é no drible de Mané, nos gols de Pelé e nas passadas de Didi e na forma como vibramos com tudo isso que nos constituímos como povo, e não nos dribles de Marin, Teixeira, Del Nero e afins.

Quando isso se desfaz, é de nossa identidade se desfazendo que estamos falando. É disso que estamos falando quando viramos chacota exatamente pelo que tínhamos de mais agudo, de marca maior mundo afora. Nesse 7 a 1 nosso de cada dia que prossegue com a gente humilde agora fora dos estádios, acossada pela perversa elitização que tomou seus lugares. Era preciso fazer camarotes para que a turma da Fifa vendesse pacotes de hospitalidade... Nesse 7 a 1 nosso de cada dia que prossegue com a escolha de um treinador que não tem o menor compromisso com essa história e identidade de um povo. Nesse 7 a 1 nosso de cada dia que prossegue com o jogo sujo para que nenhuma providência em nome de qualquer tipo de fiscalização passe. E é assim que seguimos, um ano depois, nesse 7 a 1 nosso de cada dia.

O pesadelo era bem realista. A uns 50 metros da goleira de Julio Cesar, eu achava que estava vendo aqueles alemães com uniforme do Flamengo enfiarem uma bola atrás da outra, numa inexplicável procissão de gols. A alguns passos do meu assento no Mineirão, divisei uma família alemã, com três filhos pequenos, explodindo de felicidade a cada gol. Lá pelo quinto ou sexto, a mãe fez sinal para as crianças se aquietarem, temendo alguma represália de brasileiros desesperados.

E nada de acordar do sonho mau. Mais um gol. Deve ser replay, pensei. Mas isso é impossível. Eu estava no estádio, de cara para o gol, bem perto do gramado. Tinha de ser minha imaginação. Aquele placar eletrônico, pendurado atrás do gol brasileiro, piscando o 7 a 1, não existia. Era uma miragem. Ahahaha. Ainda vamos acordar e rir disso tudo. Então os brasileiros inverteram a torcida. Agora aplaudiam os alemães. Coisa de doido. Bandeirinhas verde-amarelas jaziam no chão, a arquibancada esvaziada pelo vexame 15 minutos antes do final da partida. A Seleção é vaiada. Não, mais do que isso. É desprezada pela torcida indignada.

Fim de jogo. Os derradeiros ex-torcedores passam pela família alemã, encolhida sem saber como reagir diante daquele massacre. Será que vão despejar a raiva neles? Mas nada. Nenhum sinal de animosidade. Os brasileiros cumprimentam os alemães, elogiam a blitzkrieg que arrasou o Mineirão. Por garantia, pelo alto-falante, uma voz pede em alemão para que a torcida germânica permaneça no estádio. Ninguém quer correr riscos.

Não há, porém, qualquer sinal de violência. Só a decepção, o desânimo, um sentimento profundo do próprio fracasso. O Mineirão já está quase vazio. Só subsiste a compacta massa germânica, à espera da ordem de saída. Eles cantarolam “So ein Tag, so wunderschön wie Heute..” (Um dia assim, tão maravilhoso como hoje...). Dois alemães estão mudos, sentados, olhares perdidos fitando o campo. Eles viram a história, são testemunhas de um milagre difícil de crer. Usufruem em silêncio a grandeza daquele momento.

Três horas depois, noite adentro, deixo o Mineirão. Na saída, tenho certeza de que ainda não acordei do pesadelo. Na frente do estádio, num calor gosmento, um sujeito sorridente com um gorro de pele na cabeça ergue para mim um cartaz escrito à mão: “Welcome to Russia 2018”. Que sonho engraçado. Ele não acaba nunca.


Wianey Carlet: um ano para esquecer

Diogo Olivier: um ano depois do 7 a 1, ainda somos medíocres

Luiz Zini Pires: um ano depois dos 90 minutos sem fim

Relembre os melhores memes da derrota por 7 a 1 para a Alemanha 

  1. Especial
  2. 1. "Osseteaum" ganharam vida própria
  3. 2. Corrida na direção contrária
  4. 3. O que aprendemos com a derrota?
  5. 4. Salve a Seleção
  6. 5. Pátria de chinelos
  7. 6. Um descaso para os que amam futebol
  8. 7. O sonho não acabou
  9. LEIA TAMBÉM
  10. HUMOR