Textos:
Itamar Melo
Marcelo Gonzatto

Arte:
Edu Oliveira

Edição:
Ticiano Osório

2015 foi o ano da crise – mas quem disse que 2016 não será também? Foi o ano em que o mundo viu um escândalo derrubar o presidente da Fifa, em que o país voltou a discutir o impeachment, em que o Estado conviveu com o parcelamento dos salários, em que Porto Alegre conheceu o Uber. O ano em que a lama matou um rio e invadiu o mar, em que a fosfoetanolamina provocou polêmica, e a microcefalia, pânico. Todos esses assuntos terão desdobramentos no ano que está começando. Em ZH, a retrospectiva de 2015 mistura-se às perspectivas de 2016.

Dilma passou o ano sob a ameaça de ser destituída da Presidência, por conta da corrupção na Petrobras, das pedaladas fiscais, da rejeição popular, das maquinações de Eduardo Cunha, da reabertura, pelo TSE, da ação do PSDB que pede a impugnação da candidatura da petista nas eleições de 2014. Se ela vai cair ou não, 2016 trará a resposta

Em 1º de janeiro de 2015, após amealhar 54,5 milhões de votos, Dilma Rousseff (PT) foi empossada para seu segundo mandato como presidente da República. Desfilou de Rolls Royce por Brasília, acenou para a multidão, foi festejada por parlamentares e declarou representar “um projeto de nação que é detentor do mais profundo e duradouro apoio popular de nossa história democrática”.

Terminava ali, para Dilma, a parte boa do ano.

Passados 12 meses, o governo estava paralisado, o país se encontrava em recessão, a aprovação da presidente despencara, e o mandato recém-conquistado via-se ameaçado por um processo de impeachment.

A bem da verdade, foi em fevereiro que o quadro degringolou. No primeiro dia do mês, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) elegeu-se presidente da Câmara dos Deputados, derrotando o indicado pelo Planalto, Arlindo Chinaglia (PT-SP). Ao mesmo tempo, os contornos da escabrosa corrupção na Petrobras ganharam nitidez, deixando em farrapos a credibilidade do governo. Em março, uma aparição de Dilma em cadeia nacional de rádio e TV demonstrou que o vento havia virado: sua fala foi recebida com panelaços no Brasil todo. Dias depois, massas saíram às ruas para manifestar insatisfação.

Nesse momento, já se falava de impeachment aqui e ali, mas de maneira difusa. A ideia parecia ter a mesma consistência dos apelos a um golpe militar. Os planos de derrubar a presidente, pelas armas ou pelo parlamento, podiam tranquilamente ser desqualificados como dor de cotovelo de quem ainda não conseguia aceitar a derrota na eleição.

O impeachment de um presidente é, em larga medida, uma questão política. Depende, primordialmente, de que dois terços do Congresso decidam defenestrar o mandatário. Ironicamente, medidas contra a corrupção tomadas por Dilma podem ter colaborado para abrir portas a essa condição. Ao demitir ministros supostamente envolvidos em falcatruas, ela se indispôs com vários partidos aliados.

Outro fator fundamental para o presidente cair é a rejeição popular – expressiva, a julgar pelas pesquisas de opinião. Mas falta ainda outro elemento: um bom pretexto. O presidente precisa ter feito algo que possa ser enquadrado como crime de responsabilidade.

Esse pretexto foi encontrado nas chamadas pedaladas fiscais, manobra financeira para fechar as contas ao final de cada ano. Diferentes próceres da República recorreram à prática, mas na gestão Dilma o expediente teria alcançado patamar inédito. Em outubro, o Tribunal de Contas da União recomendou a reprovação das contas da presidente.

Com todos esses ingredientes reunidos, a bomba estava armada. Faltava só a fagulha para acender o pavio: Eduardo Cunha. Cada vez mais envolvido em denúncias de corrupção, o presidente da Câmara resolveu virar líder da oposição – talvez para surfar na onda anti-Dilma e, assim, salvar a própria pele. Em dezembro, o mestre das manobras regimentais determinou a abertura do processo de impeachment.


Legou, para 2016, a grande questão: Dilma cai ou não cai? O que vai ocorrer quando o Congresso voltar do recesso, em fevereiro?

– É muito difícil dizer que vai acontecer isto ou aquilo. O quadro não está claro, porque há várias questões que podem interferir. Depende do encaminhamento de vários processos distintos. Os três poderes estão com uma atuação muito forte, como talvez nunca encontramos. É um quadro que vai ser preciso acompanhar diariamente, observando os avanços e recuos de todos esses players. É um jogo de xadrez – diz a cientista política Maria Izabel Noll.

A presidente fechou o ano com uma notícia que a fortaleceu: a derrubada pelo STF do rito proposto por Cunha para o impeachment. A decisão significa, por exemplo, que será preponderante o peso do Senado, comandado por Renan Calheiros (PMDB-AL), um aliado instável do Planalto. Também houve um certo esfriamento da mobilização popular. As últimas manifestações pelo impeachment reuniram bem menos pessoas do que as anteriores.

Isso não quer dizer que a população esteja do lado da presidente. Pode ser que tenha se distanciado da ideia de afastá-la por causa de outros dois elementos favoráveis a Dilma. Um deles é o fato de que o processo seja capitaneado por Cunha, ele próprio enredado em escândalos. O outro é que Dilma seria substituída pelo seu vice, Michel Temer (PMDB), o ex-discreto que resolveu brincar com fogo e acabou carbonizado: a carta lamurienta que enviou à presidente, aquela da expressão em latim verba volant, scripta manent (“as palavras voam, os escritos permanecem”), passou a ideia de que ele está ávido por se credenciar como alternativa de poder.

– A carta do Temer foi desastrosa. E o fato de o pedido de impeachment ter sido feito pelo Cunha conspurcou o processo. Hoje, o quadro está favorável ao governo. Ele tem o terço necessário no Congresso para barrar o processo, e o STF estabeleceu regras que impedem as manipulações que vinham sendo feitas. Mas o desfecho vai depender muito do resultado da economia e das surpresas que Cunha ainda possa produzir – diz o cientista político Benedito Tadeu César.

Além da economia e das maquinações de Cunha (se ele próprio não cair), a presidente terá de torcer para que os incessantes e imprevisíveis desdobramentos da Operação Lava-Jato não lhe tragam mais complicações. Dilma ainda vai ter de se preocupar com a ação reaberta no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de impugnação de sua chapa na última eleição, por abuso do poder político e econômico.

– Isso é o que mais coloca o mandato em risco. Se o TSE entender que houve abuso de poder econômico, teria de anular as eleições e convocar outras. Mas, por coerência, deveria envolver os outros candidatos, que receberam dinheiro das mesmas empresas. Então seria uma eleição na qual os principais líderes políticos estariam fora. O nome mais forte seria o do Lula – avalia César.

O cientista político Murillo de Aragão vê um cenário indefinido. Ele afirma que o embasamento jurídico é irrelevante. O que faz diferença seria a existência de um entendimento político de que Dilma não merece prosseguir. Fatores para que esse entendimento político triunfe estariam presentes:

– A base do governo é instável, sua competência é duvidosa, a economia está em situação trágica e existe a incerteza da Lava-Jato. Além disso, o governo é impopular. Todo mundo diz que as doenças estão dentro da gente, mas o sistema imunológico não deixa que elas vençam. No caso da Dilma, essas defesas estão baixas. Quem trouxe o impeachment para a pauta foi o próprio governo, por palavras, atos e omissões.

Seja como for, até a situação se definir, Dilma terá de se contentar, para recorrer a termo usado por Temer, em ser uma presidente “decorativa”.

– Governar, no sistema que temos, requer alguma harmonia entre Executivo e Legislativo. Essa dinâmica está quebrada. Fica muito difícil ter uma agenda propositiva. Na verdade, fica muito difícil ter uma agenda – diz Maria Izabel.

As previsões consideradas pessimistas no começo do ano mostraram-se otimistas demais: o PIB caiu, o dólar subiu e a inflação disparou

Em janeiro, as expectativas do assustadiço mercado financeiro pareciam muito pessimistas: segundo o boletim Focus, que sintetiza a percepção de vários economistas do país, o PIB cresceria apenas 0,5%, o dólar alcançaria R$ 2,80, e a inflação, 6,6%.

Hoje, vê-se que as previsões eram otimistas em demasia. O PIB deve amargar queda de 3,7%, o dólar chegou a passar dos R$ 4, e a inflação disparou a mais de 10,5%.

— Economistas erram, mas errar em um grau tão grande não é comum — comenta o economista Fernando Sampaio, diretor de macroeconomia da consultoria LCA.

No intervalo entre as previsões preliminares e as constatações tardias, o Brasil foi sacudido por uma intensa crise econômica. Antigos fantasmas, como as filas para buscar emprego, voltaram a rondar os brasileiros. Como sintoma da perda de um milhão de vagas ao longo de 2015, 35 mil pessoas se alinharam ao longo de mais de um quilômetro para conseguir trabalho em um “feirão de empregos” em Niterói (RJ), em novembro.

Segundo o Comitê de Datação de Ciclos Econômicos (Codace), os primeiros sinais da recessão surgiram ainda no segundo trimestre de 2014, quando se encerrou período de expansão econômica iniciado cinco anos antes. Poucos esperavam, porém, que o país mergulhasse tão fundo na crise nos meses seguintes — o que contribuiu para corroer a aprovação da presidente Dilma (em pesquisa do DataFolha de 30 de novembro, apenas 10% consideravam bom ou ótimo seu governo). Desgastado, o ministro da Fazenda Joaquim Levy foi substituído por Nelson Barbosa poucos dias antes do Natal.

O temor de que isso signifique um afrouxamento no rigor fiscal fez o dólar superar os R$ 4 e a bolsa de valores cair.

Para Sampaio, a instabilidade política, o que inclui a deterioração das relações entre o Executivo e o Congresso, potencializou o impacto de medidas destinadas a reequilibrar as contas públicas após as eleições, como aumento de juros e de impostos e corte de gastos. Todos os indicadores de saúde econômica entraram em pane.

— Só recebemos notícias ruins, como desemprego e juros altos, aumento de impostos, dólar alto, inflação alta — resume Sampaio.

Para o economista e professor da UFRGS Flavio Fligenspan, Joaquim Levy “errou na dose” ao tentar colocar as contas públicas nos eixos:

— A Dilma sabia que tinha de corrigir distorções em áreas como câmbio, contas públicas e nos preços de energia elétrica e combustíveis. Essas correções envolveriam subir os juros e restringir o crédito para segurar o impacto inflacionário. O Levy programou uma recessão, mas acredito que ele errou a medida, e a atividade econômica caiu muito.

O rebaixamento da nota do Brasil atribuída por agências de classificação de risco, como a Fitch e a Standard & Poor’s, que retiraram o status de “bom pagador” do país, é outro complicador. Assim, o cenário de recessão deverá se manter ao longo de 2016.

— A incerteza política continua presente e é muito difícil fazer ajuste fiscal no meio de uma recessão. O quadro internacional também não ajuda, já que o mundo está crescendo menos do que no período pré-crise de 2008 — diz Sampaio.

Com déficit no caixa, governo do Estado fatiou salário dos funcionários públicos

Servidores públicos gaúchos passaram 2015 com um olho na carteira e outro no calendário. O parcelamento dos salários transtornou a vida de quem viu seus ganhos fatiados e levou a uma série de protestos que atingiu serviços como educação, transporte, segurança e acabou por alterar o cotidiano de milhões de gaúchos.

Funcionários públicos já haviam enfrentado as agruras de um parcelamento durante o governo Yeda Crusius, em 2007. Mas a gravidade da crise financeira do Estado em 2015 levou a convocação de paralisações, bloqueios de rodovias no Interior, piquetes diante de unidades da Brigada Militar e boatos sobre arrastões e suspensão de circulação de ônibus na Capital em razão da falta de segurança.

O problema é o de sempre: o Estado gasta mais do que arrecada. O Rio Grande do Sul chega ao final de 2015 com um rombo de pelo menos R$ 2 bilhões. Somado a um novo déficit de R$ 4,6 bilhões esperado para 2016, a conta total em aberto deverá chegar a, no mínimo, R$ 6,6 bilhões.

– Os salários só poderão ser pagos em dia se o governo vender patrimônio, o que é uma má ideia porque significa queimar patrimônio, ou se conseguir não pagar a dívida com a União. Como o governo federal está bloqueando as contas, não tem de onde tirar (dinheiro). Se não aparecer receita extra, vai continuar atrasando o pagamento dos salários – analisa o especialista em finanças públicas Darcy Francisco Carvalho dos Santos.

A Secretaria Estadual da Fazenda não confirma oficialmente a continuidade do parcelamento em 2016, mas informa que “o grau de dificuldade será muito grande”.

A investigação da Polícia Federal sobre a corrupção na Petrobras começou em 2014, mas foi em 2015 que ganhou força, com a prisão de empreiteiros, banqueiros e um senador

Nos últimos meses, os brasileiros testemunharam cenas que muitos consideravam impossível virar realidade: banqueiros respeitados, empreiteiros multimilionários e políticos de primeira grandeza em Brasília foram parar atrás das grades depois de caírem na rede de investigações da Operação Lava-Jato.

A apuração de irregularidades realizada pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal teve início ainda em março de 2014, quando o doleiro Alberto Youssef foi detido por envolvimento em um esquema de lavagem de dinheiro, mas foi no ano seguinte que a força-tarefa de policiais e procuradores se aprofundou e ganhou força suficiente para estremecer pilares políticos e empresariais até então intocados no Brasil.

Um dos maiores abalos no império formado pelas grandes corporações foi sentido no dia 19 de junho, quando a PF prendeu os presidentes da Andrade Gutierrez, Otávio Marques de Azevedo, e da Odebrecht, Marcelo Odebrecht – dono da nona maior fortuna do país, avaliada em R$ 13 bilhões pela revista Forbes, e criado desde pequeno para assumir o comando do império familiar.

A Lava-Jato alcançava, assim, novo patamar na escala de prisões retumbantes que já havia levado para a cadeia, em 2015, o ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró e o ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto. Quando a operação parecia perder fôlego, o cumprimento de novos mandados mais uma vez surpreendeu o país.

Na manhã de 25 de novembro, foram detidos o senador Delcídio Amaral (PT) e o dono do banco BTG Pactual, André Esteves. A ação foi revestida de um caráter simbólico significativo: pela primeira vez no período democrático atual, um senador da República foi preso no exercício do mandato. Esteves, por sua vez, é um dos mais influentes e conhecidos banqueiros brasileiros.

Às prisões, somaram-se dezenas de outros mandados e condenações. No mais recente balanço do Ministério Público Federal, divulgado em dezembro, a Lava-Jato já contabilizava, desde seu início, 396 buscas e apreensões, 119 mandados de prisão, 36 acusações criminais contra 179 pessoas e 80 condenações que, juntas, somam 783 anos de pena. Os crimes denunciados no âmbito da operação totalizam o pagamento de pelo menos R$ 6,4 bilhões em propinas, dos quais R$ 2,8 bilhões já foram recuperados.

Pela relevância que adquiriu ao remexer nas entranhas da relação entre os poderes público e econômico brasileiros, a Lava-Jato gerou até uma celebridade de internet: o policial Newton Ishii, o Japonês da Federal, que virou marchinha de Carnaval.

– A Lava-Jato foi a primeira das grandes operações que conseguiu criminalizar um setor importante do empresariado brasileiro. Outras operações, como a Macuco, que gerou a operação do Banestado, ou a Gautama, que já envolvia empreiteiras, não deram em muita coisa. Nesse sentido, foi um marco na história do Brasil – avalia o cientista político Bruno Lima Rocha, professor da Unisinos e da ESPM.

Para Rocha, a dimensão alcançada pela Lava-Jato em 2015 é fruto do aprimoramento institucional da Polícia Federal e do Ministério Público. Na avaliação do cientista político, o terreno conquistado por esses órgãos frente às organizações criminosas deverá permanecer como um legado para 2016 e os anos seguintes – favorecendo novas operações e punições de políticos, servidores públicos ou empresários envolvidos em corrupção.

Rocha, entretanto, considera arriscado prever quais os possíveis rumos da operação:

– Não se sabe o que sobrou para contar. Quando o Delcídio foi preso, havia expectativa de que ele falasse sobre o esquema ao qual estava supostamente vinculado. Mas devemos lembrar que ele estava ligado ao governo desde o período FHC e, em política, quando se pega todo mundo, não se pega ninguém. Os desdobramentos são imponderáveis.

As investigações seguem em curso. A assessoria de comunicação do Ministério Público Federal informa que o sigilo que envolve as ações da força-tarefa não permite informar se ou quando ocorrerão novas prisões ou indiciamentos.

O desastre ambiental de Mariana (MG) ceifou vidas, arrasou vilas, exterminou uma centena de espécies de peixes. Em 2016, deverão ser apontados os primeiros responsáveis pelo rompimento da barragem

Os últimos 365 dias entrarão para a história do país como o “ano da lama”. Por décadas, os brasileiros levarão gravados na memória os detalhes da tragédia ambiental e humana provocada pelo rompimento da barragem de resíduos em Mariana, Minas Gerais, que soterrou pessoas, arrasou vilas, contaminou mananciais e condenou à morte milhares de peixes ao longo de mais de 500 quilômetros do Rio Doce.

O desastre entrou em curso por volta das 16h do dia 5 de novembro, quando uma onda de rejeitos de minério se ergueu primeiro sobre o subdistrito de Bento Rodrigues, depois rugiu sobre a localidade de Paracatu de Baixo e seguiu em frente devastando vales e rios, matando gente, bicho, planta. Até o momento, foram confirmados 17 mortes e dois desaparecimentos de operários e moradores.

Bento Rodrigues, que recebeu em cheio o impacto do tsunami de lodo, foi arrasado. Da escola, restaram algumas paredes sujas. Várias casas foram arrastadas por inteiro. Famílias como o casal de aposentados José do Nascimento de Jesus, 70 anos, e Maria Irene de Deus, 76, perderam todas as lembranças e economias de uma vida inteira. Quando a lama passou, Jesus e Maria restaram apenas com a roupa do corpo e um telefone celular.

– Perdemos tudo o que a gente tinha, casa, carro, recordações. Pelo menos, consegui comprar outro violão – lamentou Jesus, poucos dias após a tragédia, em entrevista a ZH.

Depois de aniquilar vilarejos, a onda suja serpenteou por vales até encontrar o Rio Gualaxo do Norte. Por seu leito, chegou a outro rio, o Carmo. A força da lama era tão grande que parte dela subiu cerca de cinco quilômetros contra a correnteza, antes de refluir e finalmente se despejar por inteiro no Rio Doce, por onde seguiu ao longo de mais de 500 quilômetros até manchar o mar do Espírito Santo.

Neste caminho, dizimou cerca de uma centena de espécies de peixes – entre as quais 71 nativas.

– Foi o maior extermínio de peixes da América Latina – atestou o ecólogo e professor da Universidade Federal de Minas Gerais Ricardo Pinto Coelho.

Acredita-se que levará décadas para a região afetada se recuperar. A empresa Samarco, dona da barragem do Fundão, recebeu multa de R$ 250 milhões do Ibama e assinou acordo com o Ministério Público de Minas Gerais para pagar R$ 1 bilhão em razão do impacto socioambiental. Especialistas avaliam, porém, que a conta final a ser quitada, ainda sob cálculo, deverá chegar à casa das dezenas de bilhões de reais.

Em 2016, deverão ser apresentadas as primeiras conclusões oficiais sobre os motivos da tragédia e os nomes dos primeiros responsabilizados civilmente pelo vazamento dos rejeitos. Há diferentes inquéritos em andamento: um criminal, a cargo da Polícia Federal e da Polícia Civil, e dois cíveis, sob responsabilidade do Ministério Público Federal, de Minas Gerais e do Espírito Santo. Um deles investiga as razões do rompimento, e o outro está focado no processo de licenciamento da barragem do Fundão. Espera-se que os primeiros resultados sejam divulgados ainda no primeiro semestre.

– Teremos a finalização dos inquéritos cíveis em março, quando deveremos identificar as causas e os responsáveis pela tragédia e apontar as medidas necessárias à reparação e à compensação dos danos – revela o promotor de Justiça do MP de Minas Gerais Carlos Eduardo Ferreira Pinto.

Poderão ser responsabilizados representantes da empresa e agentes públicos a quem cabia aprovar o licenciamento e fiscalizar o empreendimento. Dependendo das conclusões dos inquéritos, poderão ser realizados Termos de Ajustamento de Conduta e abertas ações civis públicas para impor medidas como cobranças de multas. O inquérito criminal dirá se alguém – e quem – deve ser punido pelas mortes. A possibilidade de recursos, porém, deverá estender o caso nos tribunais.

– Já podemos dizer, pelo grande volume de informações que coletamos, que houve omissões graves no processo de licenciamento da barragem do Fundão – adianta o promotor Carlos Eduardo Ferreira Pinto.

A temporada de barbárie começou e terminou em Paris. Por trás da maioria dos atentados, tremula a bandeira nefasta do Estado Islâmico

Desde que a Al-Qaeda atacou as Torres Gêmeas, em 2001, os atentados viraram parte da paisagem – de uma desoladora paisagem. Mesmo com um padrão tão elevado no que diz respeito a morticínios cometidos por radicais tresloucados, 2015 conseguiu se sobressair.

Pode-se dizer que a temporada de terror foi aberta e encerrada em Paris. O evento inaugural deu-se em 17 de janeiro, quando dois atiradores invadiram a redação da revista satírica Charlie Hebdo e assassinaram 12 pessoas, incluindo alguns dos mais famosos chargistas franceses. Boa parte da população mundial sentiu-se ultrajada e muita gente adotou o slogan Je suis Charlie, mas não faltaram também algumas figuras, inclusive nos meios acadêmicos, para culpabilizar as vítimas – perpetradores do terrível crime de fazer humor.

O evento de encerramento da estação de atentados, pelo menos dos mais midiáticos, ocorreu em 13 de novembro, quando terroristas atacaram uma casa de shows, um estádio de futebol e uma série de restaurantes e bares de Paris. As 130 vítimas foram dizimadas enquanto divertiam-se com música ou ao redor de uma mesa com amigos. Ponto positivo: nenhum intelectual apareceu para justificar os terroristas.

Entre um ataque a Paris e outro, os atentados foram muitos – para citar alguns, o fuzilamento de passageiros de um ônibus no Paquistão (43 mortos), a chacina de veranistas em hotéis da Tunísia (38), a derrubada de um avião de passageiros russo sobre a região do Sinai (224) e a explosão de bombas durante um protesto pacífico na Turquia (96).

O responsável pela maior parte desses ataques foi o Estado Islâmico (EI), um grupo que se fortaleceu no vácuo de poder decorrente da guerra civil na Síria e que conquistou territórios do Oriente Médio, onde implantou um califado. Aliando o mais desapiedado uso da violência à intimidade na manipulação de ferramentas digitais, a organização se notabilizou por postar no YouTube vídeos de decapitações de prisioneiros.

– Quem estava na região já sofria com o Estado Islâmico havia dois anos. Em 2015, o problema bateu no Ocidente. Para 2016, será um tema crucial, que vai influenciar eleições e a tomada de decisões pelos governos – afirma Paulo Visentini, professor de Relações Internacionais da UFRGS.

A ascensão da organização terrorista contou com ajuda do Ocidente. A prioridade dos EUA e de potências europeias, na Síria, era derrubar o ditador Bashar Al-Assad. Para eliminar a ameaça do EI, no entanto, seria crucial aliar-se ao inimigo e agir com ele no enfrentamento aos fanáticos. Avessos a essa ideia, Barack Obama e lideranças europeias optaram por ataques aéreos, sem apoio no solo. Foram mais de 7 mil operações, com resultados pífios.

No final de setembro, um dos malvados favoritos do Ocidente entrou no jogo e começou a mudá-lo. Vladimir Putin, presidente da Rússia, empenhado em socorrer Al-Assad, último aliado no Oriente Médio da antiga zona de influência soviética, passou a bombardear o EI. A ação foi feita em combinação com as forças terrestres do regime ditatorial. Pela primeira vez, o califado terrorista começou a encolher.

Com Putin dando apoio a Al-Assad, e Obama empenhado em vê-lo cair, havia um impasse. É possível que o próprio EI tenha tratado de superá-lo, unindo todas as forças contra si ao atacar Paris em novembro. Uma brecha para aproximação entre EUA e Rússia se abriu. Em dezembro, o Conselho de Segurança da ONU aprovou, por unanimidade, uma resolução para pacificar a Síria. Foi a primeira vez que americanos e russos concordaram em relação a uma estratégia para o país.

Os desdobramentos dessa discussão podem determinar que força o terror terá nos próximos anos. Os otimistas esperam que se promova um cessar fogo entre Al-Assad e a oposição, com o foco dos combates se voltando exclusivamente para o EI. Putin já sinalizou que aceitaria um acordo em que

Al-Assad fosse mantido no poder por tempo limitado, comandando uma espécie de governo de transição.

– O Estado Islâmico tem um custo elevado para os líderes políticos ocidentais. Há perspectiva clara de se formar uma coalizão internacional que reúna Rússia e Estados Unidos. Se isso não acontecer, a situação vai piorar – avalia Fabiano Mielniczuk, professor de Relações Internacionais da ESPM-Sul.

Ainda que o EI seja derrotado, não se deve ter muitas esperanças de que o terrorismo deixe de fazer estrago em 2016. Primeiro, porque há outros grupos radicais. Depois, porque entre os combatentes do EI há milhares de europeus e americanos que podem voltar a seus países de origem cheios de ódio na bagagem. E terroristas podem ter aproveitado a onda de refugiados que tomou a Europa para ingressar no continente.

– A probabilidade é de que ocorra algum atentado grande – alerta Mielniczuk.

2016 será o termômetro para saber se estão mesmo de pé as promessas dos países para frear o aquecimento global

Se a humanidade tiver sorte e juízo, 2015 não ficará na História como o ano dos atentados de Paris, da crise dos refugiados na Europa ou da conversão do Estado Islâmico em ameaça global. Esses serão temas de alcance limitado, sepultados com sua própria época. Com sorte e juízo, 2015 será lembrado, nas décadas, séculos e milênios vindouros, como o ano em que a civilização foi salva da catástrofe por um acordo inédito, celebrado por 195 países, na Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas (COP21).

Para saber se isso será realidade ou não, 2016 terá um papel fundamental. As metas para refrear o aquecimento global só serão atingidas se os países começarem a tomar medidas imediatamente. O próximo ano será o termômetro para saber se o acordo da COP 21 foi para valer.

– Os países fizeram uma série de promessas. Em 2016, vão ter de arregaçar as mangas, porque precisam começar a trabalhar rapidamente. Vamos perceber quais são as reais intenções.

Se o subsídio de US$ 1 trilhão concedido pelo países do G20 aos combustíveis fósseis continuar, por exemplo, será um indicador de que as promessas não eram sérias – afirma o físico Délcio Rodrigues, do Observatório do Clima.

O acordo assinado em Paris fixou em 1,5ºC o teto para aumento da temperatura global até 2100, na comparação com os níveis pré-industriais. É um objetivo ruim. Significa extinção de espécies, eventos climáticos extremos, elevação do nível dos oceanos, quebra de colheitas. Mas é muito melhor do que a alternativa, que seria um aumento na faixa dos 3ºC, se nada for feito. Nesse caso, teríamos o colapso da civilização.

A necessidade de fazer algo em relação ao aquecimento global é reconhecida pelos governos desde a conferência realizada em 1992 no Rio de Janeiro, mas os desacertos e os fiascos predominaram nas duas décadas seguintes. Por esse motivo, mesmo com todas as limitações, o compromisso celebrado em 2015 foi um avanço espantoso.

Contou para isso a percepção generalizada de que já estamos sofrendo os efeitos do aquecimento. Antes reticentes com relação a um acordo para reduzir suas emissões, os Estados Unidos depararam com tempestades severas, uma seca de proporções colossais na Califórnia e a possibilidade real de que a Flórida fique submersa com a elevação do mar. A China, outro poluidor furioso que resistia a mudar de política, foi convencida pela qualidade venenosa do ar em suas grandes cidades.

No Brasil, eventos climáticos severos também marcaram 2015. O Sudeste enfrentou uma estiagem violenta. O Rio Grande do Sul não teve inverno e encarou dilúvios. Em Porto Alegre, o Guaíba atingiu o maior nível desde a lendária enchente de 1941 – e quase transbordou. A expectativa, em termos globais, é que 2015 seja o ano mais quente da História. O campeão anterior era 2014.

Os documentos da COP21 não deixam claro como os objetivos serão atingidos e não preveem penalidades, mas estabelecem revisões de metas quinquenais para os países e garantem financiamento anual de US$ 100 bilhões às nações pobres. A expectativa é que daqui para a frente tenham impulso iniciativas sustentáveis. A aposta é que se multiplique o investimento em energia solar e eólica e em sistemas de transporte público, por exemplo.

– Um representante da associação europeia da indústria do carvão observou que o acordo significa que, no futuro, essa atividade vai ser encarada da mesma forma como os traficantes de escravos são vistos hoje. As perspectivas para essa turma se fecham, e abrem-se as perspectivas para uma outra turma, a das indústrias amigas do clima, que já estão crescendo US$ 600 bilhões ao ano. No caso do Brasil, ainda temos muito investimento em combustível fóssil e vamos ter de discutir se vale a pena continuar amarrando nosso futuro ao pré-sal – projeta Délcio Rodrigues.

Um empecilho para as mudanças é que elas significariam um freio no desenvolvimento econômico. Reduzir as emissões de dióxido de carbono, mostram as projeções, representa conter o PIB. Pode uma sociedade viciada em crescimento aceitar empobrecer para salvar o planeta? Nesse cenário complicado, Luiz Gylvan Meira Filho, que foi vice-presidente do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), vê na pressão popular um papel decisivo para a concretização dos acordos de Paris:

– Entre a emissão do gás carbônico e a mudança no clima que ela provoca, passa-se um período de 40 anos a 50 anos. A mudança que verificamos hoje tem a ver com emissões de meio século atrás. Se você quer estabilizar a temperatura em 2100, precisa providenciar que as emissões de 2050 sejam 70% menores. Isso significa que não se pode investir hoje em usinas térmicas, que operam por décadas. Se a população não resistir a isso, a inércia fará tudo continuar como está. Este é o momento da pressão da sociedade.

A indiferença, o amparo e, agora, a desconfiança da Europa para com fugitivos da guerra na Síria

O homem se distingue das outras espécies por ser racional, mas quase sempre é a emoção que o faz tomar posição e agir. Por meses a fio, centenas de refugiados morreram em tentativas desesperadas de chegar à Europa, sem que a maior parte da humanidade despertasse de sua indiferença. No dia 2 de setembro, uma foto mudou tudo. Era a imagem do corpo de um menino sírio de três anos, Aylan Kurdi, depositado pelas ondas em uma praia da Turquia. Ele havia morrido afogado, durante a precária e clandestina travessia para a Grécia.

A força da imagem provocou uma onda de comoção, abriu os olhos do mundo para a tragédia dos que fugiam da guerra e pressionou as autoridades. Governos europeus – alguns, não todos – tomaram medidas para evitar mortes, relaxar barreiras que dificultavam a entrada dos imigrantes e criar estruturas para acolhê-los. Em inúmeras cidades, populações receberam os recém-chegados com homenagens e solidariedade. Ao fim do ano, a Europa havia acolhido mais de um milhão refugiados, a maioria fugitivos da guerra civil na Síria. Os mortos e desaparecidos somavam 3,4 mil.

Se decisões baseadas mais na emoção amenizaram o drama dos refugiados após a morte de Aylan, há indícios de que em 2016 elas podem ter efeito contrário. Quando se divulgou que um dos perpetradores dos atentados de novembro em Paris teria ingressado na Europa como imigrante, essa reação já se fez sentir. Como Aylan, o extremista era apenas um entre um milhão, mas já foi o bastante. De vítimas, os imigrantes passaram a ser vistos como ameaça. Em países europeus, no Canadá e nos EUA, grupos mobilizaram-se para pedir a proibição de vistos de entrada.

– Os governos alemão e francês estavam tentando que o acolhimento continuasse, mas o atentado de Paris vai repercutir nessa política, em toda a Europa. Essas pessoas vão sofrer discriminação, vão ser rejeitadas, vão ficar ao relento em pleno inverno. O homem silencioso da Europa cansou – diz Paulo Visentini, professor de Relações Internacionais da UFRGS.

Um reflexo disso seria a votação – a maior de sua história – obtida pela ultradireitista Frente Nacional nas eleições de dezembro na França. A xenofobia também se fortaleceu na Alemanha, marcada por ataques incendiários a abrigos para refugiados. Em Dresden, 20 mil se manifestaram no final de outubro para pedir deportação imediata e maciça dos forasteiros.

Especialistas entendem que o medo de atentados, a associação simplista entre imigrantes islâmicos e terrorismo, e os conflitos e as dificuldades decorrentes da integração à sociedade podem envenenar o clima político na Europa.

– O grande desafio para 2016 é a integração dos imigrantes à sociedade europeia, mas após os atentados a situação se complicou muito. Vai existir um olhar mais duro em relação ao refúgio. A xenofobia só vai aumentar – lamenta a socióloga Aline Passuelo de Oliveira, do Grupo de Assessoria a Imigrantes e a Refugiados (Gaire/UFRGS).

O professor de Relações Internacionais da ESPM Fabiano Mielniczuk chama a atenção para um possível efeito perverso da discriminação, que deixa à margem não só os recém-chegados, mas também as populações muçulmanas e de origem estrangeira. Os subúrbios franceses que concentram esses grupos, incluindo filhos de imigrantes de antigas colônias, são assolados pela violência, pelo desemprego e pela falta de acesso à educação. Excluídos da sociedade, estariam cada vez mais propensos exatamente àquilo que temem os xenófobos: abraçar o radicalismo.

– É um ciclo que se alimenta – observa Mielniczuk.

Da #primeiroassedio a #meuamigosecreto, do aplicativo Sai pra Lá ao movimento Vamos Juntas?, as mulheres foram às redes sociais para dizer “chega” a todo tipo de violência e discriminação

O amigo-secreto de Natal nunca mais será o mesmo depois de 2015. Quando os festejos natalinos começaram a se aproximar, milhares de mulheres brasileiras colocaram a tradicional brincadeira a serviço da denúncia do machismo cotidiano a que estão sujeitas. Sem dar nomes, espalharam pelas redes sociais descrições de situações que experimentaram, muitas vezes envolvendo indivíduos muito próximos:

“Meu amigo secreto acha que homem pode ser barrigudo, feio, largado. Mulher, se não for toda bonitona e gostosa, tem mais é que ficar sozinha”, postou uma. “Meu amigo secreto disse em uma coletiva que só iria me dar uma entrevista se eu fosse ‘tomar uma cerveja com ele’ e que eu era bonita demais pra ser tão inteligente”, escreveu outra.

Iniciativas desse tipo foram uma constante em 2015, o ano em que o Brasil viu emergir uma expressiva onda de ativismo feminista, propagada por uma geração que modernizou o discurso, os recursos e as ferramentas utilizados para defender a causa. Nesse processo, a internet ocupou papel central. Basta lembrar outra das iniciativas que marcaram o ano nas redes sociais, a campanha Primeiro Assédio, por meio da qual as brasileiras partilharam depoimentos sobre a ocasião inaugural e traumatizante em que se viram vítimas do abuso masculino.

Que as mulheres resolveram dizer “chega” a todo tipo de violência e discriminação, não resta dúvida. Mas por que justamente em 2015? A antropóloga Débora Diniz, da Universidade de Brasília (UnB), lembra que este foi o ano em que Eduardo Cunha conquistou a presidência da Câmara. A consequência foi o avanço de uma pauta conservadora que tinha os direitos femininos como um de seus alvos preferenciais.

– Por um lado, essa mobilização é resultado de um fenômeno de longo prazo, resultado da escolarização das mulheres, da popularização das mídias digitais e da apropriação do movimento feminista pela nova geração. Essa nova geração poderia ter eclodido em 2014 ou em 2016, mas eclodiu neste momento por causa do aparecimento de uma pauta conservadora, especialmente no campo reprodutivo e sexual. Quanto mais conservadora se torna a sociedade, maiores são as reações – analisa a professora.

Entre as ações de Cunha que despertaram a ira feminina, esteve um projeto de lei que propõe dificultar o acesso de mulheres estupradas ao aborto. Protestos tomaram ruas de grandes cidades brasileiras, como São Paulo, Rio e Porto Alegre. A questão também ganhou fôlego graças ao Enem, que teve como tema de redação “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. Houve acusações de que a escolha seria um exemplo de manipulação ideológica no exame – mas essa linha de raciocínio apenas reforçou a percepção de que as mulheres têm razão quando reclamam da naturalização do machismo.

No Ensino Superior, a cena não é diferente. Em março, o relatório final da CPI das Universidades, da Assembleia Legislativa de São Paulo, mencionou a suspeita de 112 estupros ocorridos apenas na Universidade de São Paulo (USP) nos últimos 10 anos. Em dezembro, uma pesquisa nacional encomendada pelo Instituto Avon mostrou que 67% das mulheres já sofreram algum tipo de violência no ambiente universitário.

O desconforto que as mulheres passaram a expressar com veemência originou uma série de iniciativas particulares. A estudante Catharina Doria, 17 anos, criou o aplicativo Sai Pra Lá, por meio do qual as usuárias podem registrar experiências diárias de assédio. Em Porto Alegre, Babi Souza, 24, lançou o movimento Vamos Juntas?, em que mulheres se conectam para fazer trajetos pela rua em grupo, como forma de evitar abusos e violência. Em São Paulo, Ana Luisa Monteiro, 26, lançou o M’Ana – Mulher Conserta pra Mulher, empresa de serviços domésticos que opera com o slogan “Ômi estranho em casa nunca mais!”, para poupar as clientes de situações de assédio por profissionais masculinos.

Em algumas das ações de cunho feminista lançadas em 2015, os homens tiveram participação. No projeto Agora é que São Elas, blogueiros e colunistas da imprensa cederam seus espaços para que mulheres pudessem expor seus pontos de vista – uma iniciativa algo ambígua, na medida em que, ainda que permitisse a elas ocupar púlpitos importantes, limitava esse acesso a um único dia e apenas porque um homem decidiu prestar um “favor”.

A eclosão do novo feminismo foi acompanhada pela insurgência das minorias sexuais. Dois catalizadores importantes foram o projeto de lei do Estatuto da Família, que reconhecia como unidade familiar apenas a união entre homem e mulher, e o êxito da bancada religiosa do Congresso no esforço de retirar do Plano Nacional de Educação a previsão de discutir as questões de gênero na escola. Em meio a esse clima, a diversidade sexual ganhou um ícone mundial: o norte-americano Bruce Jenner, campeão do decatlo na Olimpíada de 1976 e ex-padrasto da estrela da mídia Kim Kardashian, assumiu-se como transgênero e virou Caitlyn Jenner.

Não há dúvida de que os embates, no que diz respeito às questões de gênero, continuarão acirrados, mas 2015 parece ter deixado um legado para os próximos anos.

– O mais importante para o futuro é que, agora, figuras como Eduardo Cunha e Jair Bolsonaro passaram a ter uma dimensão de resistência das mulheres. Elas estão aí. O alerta foi dado, e as coisas não serão iguais – diz Débora Diniz.

Anunciada como “pílula contra o câncer”, substância atraiu pacientes desesperados, provocou centenas de ações na Justiça, seduziu o poder público e gerou revolta de médicos e cientistas

Dizem que proibir é a melhor maneira de atiçar o desejo. O caso da fosfoetanolamina sintética parece comprovar a tese. A substância existe há duas décadas, mas poucos brasileiros haviam ouvido falar dela até que a Universidade de São Paulo (USP) resolveu vetar sua produção e distribuição. A partir dali, a molécula ganhou os noticiários, abarrotou os tribunais, invadiu a internet e passou a ser cobiçada por milhares de pessoas, convencidas de que se tratava da tão sonhada cura para o câncer – qualquer tipo de câncer. Chegou ao fim do ano com apoio oficial, galardões e dinheiro público disponível para testes. De tão popular, recebeu apelido. Virou “fosfo”.

É uma história que começa nos anos 1990, quando o químico Gilberto Chierice sintetizou a substância em um laboratório da USP em São Carlos (SP). Por conta própria e sem muito alarde, o pesquisador começou a produzir e distribuir o composto, na forma de cápsulas, entre os doentes.

Em 2014, depois que Chierice se aposentou, a USP resolveu dar um basta à prática. Não demorou para que se espalhasse no Facebook a teoria conspiratória: uma pílula milagrosa vinha sendo sabotada por médicos e laboratórios farmacêuticos. O boca a boca, ou melhor, o clique a clique, levou pacientes desesperados à Justiça. Começaram a pipocar no país, primeiro às dezenas, depois às centenas, liminares expedidas obrigando a USP a fornecer a droga.

Em lugar de refrear essa onda, as críticas de oncologistas renomados e de entidades médicas transformou-a em tsunami. Cientistas vieram a público para lembrar que a tal “pílula do câncer” não era um medicamento, que não havia sido testada, que sua segurança era desconhecida, que não tinha registro, que sua distribuição configurava charlatanismo, que outras drogas com histórico semelhante haviam se revelado enormes decepções. Mas grande parte da população reteve, de todo esse discurso, apenas três palavras: pílula do câncer.

Em meio à comoção popular, as engrenagens do poder começaram a se mover. No Rio Grande do Sul, o deputado estadual Marlon Santos (PDT) conseguiu que a Assembleia entregasse a Chierice a medalha do Mérito Farroupilha, maior distinção do parlamento, e convenceu o governador José Ivo Sartori a colocar o Laboratório Farmacêutico do Estado (Lafergs) a serviço dos estudos sobre a fosfo. Em Brasília, o Ministério da Ciência e Tecnologia fez um remanejamento de verbas e destinou R$ 10 milhões para pesquisa. Em São Paulo, o governador Geraldo Alckmin reuniu-se duas vezes com Chierice, anunciou que testaria a molécula em pacientes e pediu que o governo federal liberasse o uso em doentes sem alternativas de tratamento.

Em 2016, a fosfo enfrentará a sua hora da verdade. Vai ter de se provar útil em laboratório e em pacientes. O Instituto do Câncer de São Paulo deve começar a testá-la em breve, em cerca de mil doentes.

– Se houver facilidade de produção, e parece que o produto não é complexo, seria factível começar os testes no primeiro trimestre – anuncia Paulo Hoff, diretor clínico do instituto.

Os resultados iniciais dos estudos pagos pelo Ministério da Ciência e Tecnologia prometem chegar ainda antes.

– Já fizemos o desembolso, já estamos realizando a pesquisa e em janeiro ou fevereiro vamos ter resultados sobre a toxicidade ou não da fosfo – afirma o ministro Celso Pansera.

Nas entidades médicas, profissionais que acompanharam todo esse processo com horror já começam a achar bom que a fosfo tenha recebido recursos para testes. À medida que os resultados saírem, acreditam eles, não haverá mais como se deixar levar apenas pela fé. Os dados prevalecerão. Mas talvez eles estejam errados. Partidários da suposta pílula do câncer já estão vacinados, para o caso de a fosfo fracassar nos estudos.

– Não acreditamos na equipe do governo federal que está verificando a segurança da substância. Eles podem usar esse processo para desacreditar a fosfoetanolamina – diz o defensor público Daniel Macedo, aliado de Chierice.

O drama dos milhares de bebês nascidos com má-formação pôs o país em alerta contra o mosquito Aedes aegypti, transmissor da dengue e do zika vírus

Em 2014, nasceram no Brasil 147 bebês com microcefalia, grave máformação cerebral que causa danos mentais, visuais e auditivos. Veio 2015 e os casos começaram a se multiplicar em ritmo vertiginoso, principalmente no Nordeste. Até 26 de dezembro, eram 2.975.

A explicação para a tragédia surgira em 28 de novembro, quando o Ministério da Saúde confirmou que a microcefalia estava associada à infecção de gestantes pelo vírus zika, transmitido por um mosquito onipresente, o Aedes aegypti. O pânico se instalou. Um diretor do Ministério chegou a aconselhar que as mulheres adiassem os planos de gravidez.

Durante muito tempo restrito a aldeias africanas, o zika entrou no Brasil em 2014, possivelmente durante a Copa do Mundo ou outra competição esportiva, mas só foi detectado em maio de 2015. Não causou alarme, comparado com a dengue, a febre chikungunya e a febre amarela, outras doenças transmitidas pelo Aedes.

A tragédia dos bebês com microcefalia provocou uma ofensiva inédita contra o mosquito: o governo promete enviar, até o fim de janeiro, centenas de milhares de agentes a todos os domicílios do país. Para muitos especialistas, é tarde. O Aedes já era uma grave ameaça muito antes do zika – até novembro de 2015, a dengue afetou 1,5 milhão de brasileiros e matou mais de 800.

– Poderíamos ter minimizado o problema com combate aos focos, com saneamento básico, coleta de lixo e educação da população. Agora temos de correr atrás – lamenta José Luiz de Lima Filho, diretor do Laboratório de Imunopatologia Keizo Asami, da Universidade Federal de Pernambuco.

Sem perspectiva de uma vacina pelos próximos anos, o zika deve continuar a assombrar. Neste verão, a combinação de calor e muita chuva, prevista pela meteorologia, sugere que o mosquito transmissor terá condições ideais para proliferar. Valcler Rangel, da Fundação Oswaldo Cruz, diz que é preciso investir em pesquisa:

– A relação entre a infecção por zika e a microcefalia está praticamente estabelecida. O que não sabemos é se há outros fatores que interferem. São muitas dúvidas.

Para Rangel, a descoberta da relação entre o vírus e o dano cerebral é um triste ineditismo que não ficará restrito ao Brasil. Nos próximos meses, vai avançar para onde quer que o Aedes esteja presente.

A cúpula do futebol foi atingida em cheio. Diante das acusações de corrupção apresentadas pela Justiça dos EUA, o presidente Blatter abreviou seu mandato e marcou novas eleições para fevereiro. Platini, chefão da Uefa, também caiu

Em uma das imagens mais emblemáticas de 2015, um homem idoso de terno preto, gravata azul e óculos de grife exibe uma expressão de inconformidade, com a testa levemente franzida, enquanto notas de dólar lançadas ao ar por um manifestante voam a seu redor. Ao fundo, em um painel azul-claro, se destacam quatro letras: F.I.F.A.

O protesto realizado durante uma coletiva de imprensa do presidente da entidade, Joseph Blatter, traduzia em tom de escárnio a indignação de milhões de fãs do futebol no mundo inteiro diante das acusações de corrupção apresentadas pela Justiça dos EUA. Os alicerces da organização que comanda o esporte mais popular do planeta sofreram um abalo inédito em 27 de maio, quando sete dirigentes foram presos em Zurique em decorrência do processo em curso na Justiça americana – entre eles, o ex-presidente da CBF José Maria Marin. Investigações iniciadas em 2011 pelo FBI apontam indícios de corrupção generalizada envolvendo a disputa pelo direito de sediar Copas do Mundo, contratos de marketing e televisionamento, conspiração para lavagem de dinheiro. A eclosão do escândalo forçou Blatter a abreviar seu mandato e a convocar novas eleições para fevereiro de 2016.

A situação do presidente se agravou no fim do ano, quando o Comitê de Ética da Fifa considerou irregular um pagamento de Blatter ao presidente da Uefa, Michel Platini, e baniu os dois dirigentes de qualquer atividade relacionada ao futebol por oito anos.

Para o jornalista brasileiro Jamil Chade, autor do livro Política, Propina e Futebol, a prisão e as sanções aos dirigentes foram apenas o pontapé inicial de um jogo decisivo.

– O real divisor de águas ocorrerá em 2016. As prisões obrigarão a Fifa a se refundar, e isso é o que vai ocorrer a partir de fevereiro. Novas regras, nova estrutura e novos parceiros comerciais. A presidência é o que menos importa. O real debate agora é criar uma nova entidade, desligada dos cartolas antigos. Não será fácil e nem evidente. Mas, se isso não ocorrer, a sangria não vai acabar. Em 2015, pela primeira vez desde 2001, a Fifa terminou com prejuízo financeiro – analisa Chade.

Patrocinadores como a Adidas já anunciaram que, se a entidade não se reformar, as parcerias poderão ser canceladas. Como o FBI segue investigando 24 pessoas, novas prisões podem ocorrer a qualquer momento. No Brasil, a CPI do Futebol em andamento no Senado ganhou seis meses de prorrogação e também se estenderá por 2016.

– Mudanças na estrutura do futebol são fundamentais. Só isso, hoje, pode salvar o futebol brasileiro. A emoção do torcedor foi saqueada por esses dirigentes que, por administrações medíocres, acumularam fortunas – diz Chade.

Com estreia em 2016, tentativa de união dos clubes brasileiros esbarra em conflitos internos

De onde se esperava união, desordem. Apontada como um possível embrião de uma liga nacional, que tirasse da CBF a responsabilidade de organizar o Brasileirão, a Liga Sul-Minas-Rio perdeu força ao acentuar conflitos internos e reforçar o discurso dos dirigentes que duvidaram de sua viabilidade, argumentando que os clubes só pensam em seus próprios interesses. Ainda assim, terá sua primeira edição no início de 2016.

A Liga Sul-Minas-Rio começou com um gol sobre a CBF. A entidade não respaldava a competição prevista para o primeiro semestre do ano que vem, mas se viu obrigada a concordar com o surgimento de um novo torneio organizado pelas próprias equipes – chamado Primeira Liga. No final do ano, parecia que o jogo seria empatado: os clubes perderam entrosamento, o Cruzeiro chegou a anunciar que estava abandonando a disputa do campeonato, Flamengo e Fluminense poderiam seguir o mesmo caminho. A liga poderia se esfacelar.

Nas últimas semanas do ano, os dirigentes voltaram a negociar. O motivo da insatisfação do Cruzeiro – a eleição do presidente do Atlético-PR à presidência da liga em uma reunião polêmica – foi revista, e os mineiros retornaram à disputa. A Primeira Liga reúne Inter, Grêmio, Cruzeiro, Atlético-MG, América-MG, Fluminense, Flamengo, Atlético-PR, Coritiba, Figueirense, Avaí e Criciúma, e ocorrerá de 27 de janeiro a 31 de março. Mas antes do fim de 2015, outra polêmica chacoalhou a união dos clubes: Alexandre Kalil, CEO da liga, desligou-se do cargo em meio a rumores de que estaria insatisfeito com a postura dos colegas nas negociações de direitos de transmissão do torneio.

Ainda que com turbulências, a liga é considerada como marco de um novo modelo de gestão do futebol brasileiro, em que a CBF concentraria suas atenções sobre a Seleção. Esse sistema permitiria que os próprios dirigentes resolvessem questões sensíveis como a distribuição das cotas de televisionamento entre os participantes. Um dos principais defensores da ideia de uma liga dos clubes, o presidente gremista, Romildo Bolzan, confirmou que a intenção do grupo é ir além da simples disputa esportiva:

– A liga também é um fórum político, de uma cultura nova do futebol.

O Muro voltou à tona com a cheia do Guaíba. O Cais virou assunto de polêmica urbanística

Durante muito tempo, repetiu-se que Porto Alegre é uma cidade que voltou as costas a sua orla, mas em 2015 foi impossível ficar indiferente a ela. O Guaíba foi um dos assuntos mais quentes – e não por um, mas por vários motivos.

O mais dramático diz respeito à cheia de outubro. O nível da água subiu, subiu e subiu, até alcançar a maior marca desde a calamitosa enchente de 1941. Por pouco, não transbordou. As comportas do sistema de diques que protege a cidade tiveram de ser fechadas, uma medida rara.

Foi apenas um susto para a área central da cidade, mas as consequências serão duradouras. À medida que o Guaíba se elevava, o ódio popular pelo Muro da Mauá foi se transformando em ternura, talvez amor. De vilão, ele passou a salvador em potencial. O velho discurso da inutilidade do muro, repetido pelos que pregam sua derrubada, terá de lidar com o contra-argumento de 2015 daqui para a frente.

A quase inundação na zona dos armazéns acrescentou voltagem a outra marcante discussão sobre a orla: o projeto Cais Mauá. A subida das águas virou mais um motivo para questionar o empreendimento, que prevê a transformação de uma área de 187 mil metros quadrados em complexo de negócios, comércio e lazer: em vista do ocorrido, a obra não deveria prever uma proteção dos armazéns contra eventuais enchentes?

O grande questionamento envolveu a própria natureza do projeto. Parida após décadas de adiamentos, a revitalização transformou-se, às vésperas de começar, em alvo de movimento que arregimentou artistas, intelectuais, arquitetos e população em geral. O grupo reivindica a rescisão do contrato com a empresa Cais Mauá do Brasil, que venceu a licitação para explorar o trecho de 3,2 quilômetros. Os ativistas se opuseram à construção de torres de escritório e de um shopping à beira do Guaíba, questionaram o processo de concessão e apontaram alterações no projeto original.

Em setembro, pediram ao Ministério Público que embargasse a obra. Mais lenha nessa fogueira veio do Tribunal de Contas do Estado (TCE), que listou uma série de irregularidades. Neste mês de dezembro, pouco antes de entrar em recesso, o MP recebeu uma cópia do Eia-Rima do empreendimento, para embasar sua análise sobre o caso. Deve se manifestar em 2016.

A Assembleia Legislativa também entrou no debate. No começo deste mês, aprovou requerimento do deputado Tarcísio Zimmermann (PT) e agendou uma audiência pública para março.

– Além dos problemas contratuais, urbanísticos e ambientais, que aparentemente não estão bem equacionados, e da contestação da sociedade, surgiu um fato novíssimo: a enchente de 2015, que ocupou a área da implementação. Queremos retomar o debate a partir desses pontos de vista. Não está no horizonte a reversão do processo, mas repactuações – diz o parlamentar.

Segundo a Cais Mauá do Brasil, o projeto conta com uma série de intervenções que vão aumentar a segurança contra as cheias. Apesar de toda a celeuma, a empresa espera obter as licenças e autorizações necessárias até fevereiro, o que permitiria iniciar as obras – a partir daí, seriam 24 meses de trabalho até que os armazéns sejam entregues.

Em paralelo, estará em andamento a reurbanização de um trecho contíguo da orla, de 1,5 quilômetro, entre a Usina do Gasômetro e a Rótula das Cuias. Iniciada em outubro pela prefeitura, a obra teve um impacto tremendo na paisagem – o Guaíba foi parar detrás de um tapume. O término dos trabalhos está anunciado para 2017. Em 2016, com quase cinco quilômetros de canteiros de obras separando a população das águas, o Guaíba ficará invisível – mas todos os olhos estarão voltados para ele.

A reação violenta de alguns taxistas à chegada do aplicativo a Porto Alegre criou uma espécie de mártir e angariou a simpatia da população

A presença do Uber tem sido sinônimo de confusão em todas as partes do mundo. Executivos da empresa chegaram a ser presos na França, em junho, acusados de gerir uma companhia ilegal de táxis. A polícia também foi envolvida em Hong Kong, dois meses depois: fez uma batida nos escritórios locais do aplicativo e deteve funcionários e motoristas. Em vários outros países, o serviço foi banido pela Justiça. No Rio e em São Paulo, gerou protestos de taxistas, foi considerado irregular pelas prefeituras e passou a operar em meio a disputas judiciais.

Diante desse cenário, era de se esperar que a estreia do Uber em Porto Alegre, às 15h de 19 de novembro, também fosse marcada por celeuma e conflito. Mas as peculiaridades municipais suplantaram as expectativas – e acabaram por colocar grande parte da população a favor da modalidade de transporte recém-chegada.

O primeiro passo em falso foi dado pelo prefeito José Fortunati, uma semana pós-estreia. Tratando sobre uma lei aprovada pela Câmara de Vereadores com o intuito de deixar o Uber na ilegalidade e apoiando as ações punitivas da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), que vinha autuando veículos do aplicativo, o prefeito produziu o que seria uma das frases do ano:

– O Uber achou que Porto Alegre era terra de ninguém. Aqui tem prefeito, tem Câmara de Vereadores e tem leis.

No dia seguinte, o rosto desfigurado de Bráulio Pelegrini Escobar parecia desmentir Fortunati. Motorista do Uber, Escobar foi espancado, no estacionamento de um supermercado, por cinco taxistas que haviam usado o aplicativo para armar uma cilada. Em dezembro, quatro deles foram indiciados por tentativa de homicídio com motivo torpe e dano qualificado a veículo.

A violência deu ao Uber uma espécie de mártir, mexeu com a população da cidade – tradicionalmente descontente com os táxis locais – e aumentou a pressão sobre a prefeitura. Na sequência do episódio, Fortunati viu-se levado a convidar a cúpula do Uber no país para reunião de hora e meia e definiu a criação de um grupo de trabalho para tratar da regulamentação do transporte.

Os questionamentos ao Uber são variados: é acusado de promover competição desleal, de não pagar taxas, de colocar nas ruas motoristas destreinados e carros sem licença ou seguro e de precarizar os vínculos empregatícios. Os críticos também mostram preocupação com o uso que a empresa possa fazer dos dados de deslocamento de seus clientes e com uma suposta tendência contemporânea de aceitar qualquer inovação apresentada na forma de aplicativo como um progresso inevitável.

Apesar dessas questões, especialistas apostam que 2016 deve ser o ano em que o Uber e a legislação farão as pazes. Gisele Arantes, advogada de direito digital, entende que municípios, Estados e União vão ser forçados a se adequar:

– Proibir o Uber seria um grande erro. A gente tem de se adaptar. Entendo que o serviço é perfeitamente legal, mas precisa ser regulamentado, para que se iguale aos táxis em relação a exigências e impostos.

Para Gisele, a solução terá necessariamente de vir da esfera federal – leis municipais e estaduais seriam inconstitucionais. Renato Leite Monteiro, advogado especialista em Direito e Tecnologia, acrescenta:

– Acredito que em 2016 teremos a regulação não só do transporte individual, mas também de outros serviços da economia de compartilhamento, coisas que nossa legislação não anteviu. Até essa regulamentação ocorrer, o conflito persiste.

Resta saber que exigências estarão implicadas.

– É matéria muito complexa. A maioria das cidades, no mundo, não conseguiu resolver a questão. Vamos trabalhar para regulamentar, mas atendendo a requisitos e garantindo o equilíbrio econômico-financeiros para os táxis – afirma Vanderlei Cappellari, diretor-presidente da EPTC.

Serviços de distribuição de vídeos e áudio pela internet tornaram-se cada vez mais populares e conquistaram territórios no mundo do entretenimento

Práticos e acessíveis, os serviços de streaming – destinados a distribuir vídeo e áudio em tempo real pela internet – multiplicaram usuários e ganharam terreno no universo de entretenimento a ponto de provocar uma revolução na forma como se produz e consome cultura em todo o mundo.

Uma das pontas de lança desse fenômeno, a Netflix, em 2015 superou a marca de 69 milhões de usuários no mundo e alcançou 34 indicações a prêmios Emmy e outras oito no Globo de Ouro ao investir na produção de conteúdo. Entre seus sucessos da temporada, estão as séries Narcos, biografia do traficante colombiano Pablo Escobar, que pôs o ator brasileiro Wagner Moura na lista do Globo de Ouro, e Demolidor, primeiro título de uma franquia com super-heróis da Marvel – que já trouxe Jessica Jones e em breve trará Luke Cage, Punho de Ferro e Os Defensores. A empresa aventurou-se no cinema: drama sobre a guerra civil em um país da África, Beasts of No Nation é cotado para concorrer ao Oscar.

– Para 2016, a marca já anunciou que vai dobrar o número de produções

originais e prevê que o futuro da televisão na próxima década é na internet – avalia o estrategista digital Gustavo Nogueira, do laboratório de Tecnologia e Inovação da Perestroika.

Embora a Netflix não divulgue detalhes sobre o número de clientes em cada país, dois estudos independentes sugerem que os brasileiros compõem o quarto maior mercado mundial, atrás de EUA, Canadá e Reino Unido. O presidente da companhia, Reed Hastings, chegou a dizer que o país é o “foguete” da empresa. Segundo o analista de mercado da Nielsen Ibope José Calazans, a disseminação do smartphone ajuda a explicar o boom do streaming no Brasil. O número de pessoas que usam o celular para acessar a internet superou 72 milhões em 2015.

– O consumo de vídeo é o terceiro tipo de uso mais comum entre os brasileiros – comenta Calazans.

A influência crescente do streaming se estende a outras empresas, como Amazon, que também passou a investir nesse formato, Hulu ou a brasileira Looke. Canais e plataformas tradicionais de TV também estão investindo em transmissão por streaming, como Net, Sky, HBO e Globo.

Em relação à distribuição de música, o fenômeno é semelhante. Ao mesmo tempo em que a poderosa Apple apresentou uma ferramenta própria, a Apple Music, o Spotify, um dos principais canais via streaming, anunciou, em julho, ter batido a marca de 20 milhões de assinantes. Metade desse público foi conquistada em apenas um ano. Mais números: o catálogo dos Beatles foi disponibilizado em 24 de dezembro nos principais serviços de música online e, em apenas 48 horas, foi ouvido 50 milhões de vezes. Come Together tornou-se a campeã em audições: 1,8 milhão.

O streaming é cada vez mais comum, também, por meio de serviços e aplicativos como YouTube e Periscope – que permitem a qualquer usuário transmitir imagens em tempo real e moldar, aos poucos, a maneira como vai se consumir áudio e vídeo no futuro.

Depois de receber os beatles Paul McCartney e Ringo Starr, Porto Alegre aguarda a banda que é sinônimo de rock’n’roll

Os gaúchos deverão começar o novo ano com a língua de fora – e não será por conta do calor. Um dos principais acontecimentos de 2015 na área de entretenimento foi a confirmação do primeiro show em Porto Alegre dos Rolling Stones, que se apresentarão no Estádio Beira-Rio no dia 2 de março.

A vinda dos ingleses chegou a ficar ameaçada pela disparada do dólar, que encarece os custos de produção, mas, no começo de novembro, um vídeo publicado no site oficial da banda com o roteiro da turnê latino-americana garantiu a satisfação dos fãs. O clipe com imagens das cidades a serem visitadas por Mick Jagger, Keith Richards, Charlie Watts e Ron Wood mostrava uma tomada aérea do estádio colorado. Assim que foi anunciada, a venda de ingressos mobilizou multidões. Quando os ingressos foram liberados ao público em geral, a fila na área do Beira-Rio começou a se formar 24 horas antes da abertura das bilheterias. Esgotaram-se rapidamente.

Deverá ser um dos espetáculos que Porto Alegre carregará na memória para sempre.

– Será uma oportunidade única para vermos os criadores de uma estética do rock. Fica no mesmo nível de poucos outros shows que passaram por aqui, como Paul McCartney, Chuck Berry, BB King ou Jerry Lee Lewis – avalia o guitarrista do TNT Tchê Gomes.

Entre as cerca de duas dezenas de músicas que o grupo tocará, deverão estar grandes sucessos como Start Me Up, Brown Sugar e, claro, (I Can’t Get No) Satisfaction. Sempre faltará uma ou outra canção, mas, como o próprio Jagger cantou, nem sempre se consegue o que se quer.

  1. Palavras que atravessam o ano
  2. Section 2
  3. Section 3
  4. Section 4
  5. Section 5
  6. Section 6
  7. Section 7
  8. Section 8
  9. Section 9
  10. Section 10
  11. Section 11
  12. Section 12
  13. Section 13
  14. Section 14
  15. Section 15
  16. Section 16
  17. Section 17
  18. Section 18